Tive duas experiências que nunca esqueci com a questão do
aborto. Na primeira, encontrei um texto a respeito, supostamente narrado pelo
feto, contando suas experiências desde a concepção, até ter sua vida
interrompida. Num rompante, resolvi ler para uma amiga, então com bem mais
idade. Seu olhar foi se toldando até que saiu da sala em prantos. Fiquei
embasbacado.
Outra colega me salvou: a
amiga tivera um aborto espontâneo e nunca conseguira superar a perda daquele
que seria seu primeiro e único filho. Sugeriu, também, que não fizesse nada,
pois já tinha causado estrago suficiente.
Pela mesma época, tive um amigo com o qual gostava de sair e
que, lá pelas tantas, começou a se mostrar reticente, indiferente, apático.
Depois de algum tempo, a confissão: namorava uma menina que tinha engravidado.
Ambos não se achavam em condições de criar um filho. No afã do
momento, resolveram que o aborto era a melhor solução. Estavam recém iniciando
a vida, estudando, pretendendo ocupar cargos nas empresas em que trabalhavam e,
um filho "atrapalharia suas vidas". Guardei a impressão de que, com a
criança, morrera também a inocência; no olhar, um sentimento de vazio, a
sensação de que algo estava perdido para sempre, mesmo que o destino lhes desse
novos filhos.
Foi do que lembrei, quando o papa Francisco recomendou aos
padres usarem de misericórdia para com aqueles que praticaram o aborto e se
arrependeram. Para os cristãos católicos pode ser uma bênção e um consolo. Mas
não é uma cura. O que está feito, está feito. As marcas como consequência
acabam dando novos traços a feições que cicatrizam feridas que nem mesmo a fé
apaga completamente.
O papa Francisco anunciou que durante a celebração do Jubileu da
Misericórdia, os padres poderão "absolver" mulheres que cometeram
"o pecado do aborto", porque "o perdão de Deus não pode ser
negado a todo aquele que se arrepender" e "muitas delas têm uma
cicatriz no coração por essa escolha sofrida e dolorosa".
Explica que "alguns vivem o drama do aborto com uma
consciência superficial, quase sem se darem conta do gravíssimo mal de um ato
dessa natureza", mas que muitos outros, por outro lado, o vivem "como
uma derrota" por que "acreditam não ter outro caminho por onde
ir".
Uma das mais bonitas características do Deus cristão é,
exatamente, que Ele usa de misericórdia. Esta palavrinha mágica dá sentido à
relação de fé entre o ser humano e a sua divindade. Mesmo percorrendo caminhos
de difícil entendimento, ainda sabe que é bem acolhido em Seus braços.
Este é o
motivo pelo qual a maior parte daqueles que se afastaram de uma religião o
fazem não porque duvidem de Deus, mas porque, muitas vezes,
"religiosos" não sabem ser homens e mulheres de Deus. Especialmente
ao usar da misericórdia. São mais severos que o próprio Criador.
Ao recordar dos amigos envolvidos nos dois casos tenho certeza
de que encontram consolo nas palavras do papa Francisco. Embora saibam que não
há remédio que os faça esquecer. Nosso processo de amadurecimento passa pelo
fato de reconhecer que tudo o que fazemos ou que nos fazem deixam marcas.
Sem a pretensão de julgar
e condenar, a cada um de nós basta a culpa (cultural ou não) que sentimos,
lamentar a perda de uma vida e o quanto pode ser doloroso um olhar que perdeu a
esperança.
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