Essas expressões representam um
olhar reducionista, desconsiderando variáveis culturais, psicológicas, sociais
e econômicas que realmente determinam nossos modos de ser e consumir.
Sempre digo que o mundo digital é muito fértil. Ele faz aflorar
a cada dia novos personagens que se autoproclamam super especialistas dessa
arena online, que é extremamente dinâmica, complexa e movediça, quanto mais
você se mexe, mais perigoso vai se tornando.
Criam-se neologismos a bel prazer, termos bonitos, expressões
super sexys, infográficos moderninhos, stories cheios de efeitos, keynotes,
powerpoints que brilham no escuro, uploadam vídeos super bem produzidos
filmados em 4K, além de mega palestras com microfoninho afixado na bochecha e
todos os etceteras que você desejar.
Se alguém chegar na sua frente, bater no peito e dizer que é um
super especialista dessa cena digital, olhe bem no fundo do olho dele, dê um
passo à trás e desconfie. Para mim, isso ainda não existe. Afinal, estamos
todos no mesmo barco em um complexo processo de aprendizagem mútua de como
entender as lógicas e engrenagens desses novos espaços comunicacionais online.
Nessa arena online que habitamos, devemos dar cada passo de forma minuciosa.
Tudo é muito difuso e hesitante.
Dentro de toda essa euforia discursiva que o palco do mundo
digital nos apresenta, a cada dia vemos novos termos sendo criados no intuito
de se desenvolver algum tipo de categorização para esses novos fenômenos.
Geração Y, Millenials, Geração X, Z, W, Humanóides, etc, etc. são alguns dos
termos que vejo, concebidos despudoradamente e que tenho lido de anos pra cá.
Outro dia vi um dito professor mostrar uma tabela excel com datas, anos de
nascimento e a qual respectiva geração cada um de nós pertencia. Oi? Não é tão
cartesiano assim a parada, meu chapa. Eu não gosto desses termos, eles são
rasos e reducionistas. Acho que são termos muito marqueteiros e usados de forma
por vezes meio leviana, sabia? E tem gente que carrega um estandarte com esses
edulcorados termos e que fazem vender livros, palestras, ganham views, likes,
seguidores etc.
Os chamados "e-Books" sobre esses temas, então,
pululam por nossas timelines. Aliás, chamar essas coisas de e-Book é rir da
nossa cara, né? Outro dia, apareceu um desses em minha timeline, sagazmente
amarrado com uma boa estratégia de inbound e captura de emails, e me dei ao
trabalho de baixar. Para minha surpresa, era "vendido" como livro,
mas quando baixei se tratava de um powerpoint safado com cerca de 30 slides. O
que me preocupa, e que me deixa levemente angustiado, é que muitos desavisados
e muita gente pelo Brasil afora caem nessas armadilhas fáceis e tomam aquilo
como verdade. Afinal, pra quem tem sede de conhecimento, qualquer golinho de
água serve.
Pegando apenas o exemplo do Brasil, somos um país gigantesco,
continental e com mais de 220 milhões de pessoas. Um país fragmentado, plural e
com uma das maiores desigualdades sociais do planeta. Quer dizer que jovens
nascidos dos anos 2000 pra cá são da geração tal e todos se comportam desse
jeito blá, blá, blá??? Não é bem isso. Não podemos comparar jovens da classe
alta de São Paulo, moradores do bairro dos Jardins, com um jovem de classe
baixa de uma cidadezinha do interior de Rondônia. E praticamente todas essas
categorizações de geração isso ou aquilo colocam todos no mesmo balaio a partir
apenas dessa variável etária. Simplesmente dão de ombros para essas outras
inúmeras variáveis essenciais.
De novo, chamar pessoas de geração X ou Y, ou seja lá o que for,
eu acho algo frágil, refratário e irresponsável. É um olhar muito reducionista
que simplesmente desconsidera outra centenas de variáveis culturais,
psicológicas, sociais e econômicas, e que realmente determinam nossos modos de
ser e consumo de mídia, por exemplo. É claro que essas classificações são sedutoras
e usadas como atalhos mentais muito astutos e que simplificam o entendimento da
pessoa de um modo mais fácil. Mas seja cauteloso. Compreensão de hábitos de
determinados segmentos de consumidores a fim de os colocarmos em caixinhas para
algum tipo de sistematização de comportamentos exige um extremo rigor
metodológico, estatístico, sociológico e geográfico. Sugiro um mapeamento
preliminar cuidadoso mais representativo, de natureza mais quantitativa, e
depois um aprofundamento mais qualitativo para se buscar algum tipo de nitidez
de entendimento. Uma pesquisa empírica baseada na mera observação também é uma
técnica valiosa e que também certamente oferecerá bons insights. Há estudos de
geração Z, por exemplo, que colocam jovens de diversas partes do mundo na mesma
cesta e buscam categorizações, ao meu ver, completamente míopes. Se estamos
falando de Brasil, o mundo então é algo absolutamente ainda mais fragmentado,
diverso, heterogêneo e multifacetado. Quando vejo esses gráficos, sempre vou
buscar a fonte na cantinho, e quase sempre são institutos e empresas de
baixíssima relevância e confiança.
Você sabia que nosso Brasil tem cerca de 100 milhões de pessoas
que nem acesso à internet têm? Você sabia que nosso país tem cerca de 100
milhões de pessoas que nem acesso à água encanada têm? Você sabia que uma entre
cada três pessoas acima de 16 anos em nosso país é desbancarizada? Você sabia
que metade de nossos mais de 5000 prefeitos nem faculdade tem? Pois então,
durma com esse barulho. O Brasil tem muitas virtudes e seríssimos problemas
para resolver ainda.
Cuidado para não deduzir hábitos de consumo de mídia a partir de
seu entorno, a partir de sua bolha de classe média privilegiada. Por exemplo,
prega-se que essas novas gerações de jovens são novos seres, que são
multitarefa, multi-isso, multi-aquilo. Que as crianças hoje em dia fazem mil
coisas ao mesmo tempo, que bebezinhos com meses de vida já conseguem
desbloquear o iPhone com o dedinho. Mas será que tudo isso são características
peculiares dessas novas gerações? Será que é possível termos drásticas mudanças
geracionais em 20 ou 30 anos apenas? Oras, se dessem um iPad na nossa mão
quando éramos criancinhas, será que também não sairíamos dominando o
touchscreen de forma íntima? É claro que sim! Na nossa época nossos brinquedos
eram outros. Eu tenho 42 anos hoje e quando era criança não existia o tal iPad,
nem smartphones, nem nenhuma outra engenhoca que se aproxime desses incríveis
dispositivos eletrônicos, nem dos videogames que temos hoje. Meus brinquedos
eram apenas outros, pipas, piões, bola, jogos de tabuleiro etc.
Eletronicamente falando, nem um reles Pense Bem eu tive. Mas
tive um Atari e um Tele-Jogo. Yes! E ganhei um Colossus do meu pai aos 10 anos
de idade. E essa molecada hoje tem iPad, iPhones, Smart Watches, X-Box, usa
TikTok o dia todo, assiste a uma miríade de canais de YouTube, usa aplicativos
pedagógicos, fica no Discovery Kids o dia inteiro. Eles são muito mais
estimulados do que nós fomos na nossa longínqua infância e, por isso, tendem a
adquirir uma capacidade sensório-motora um pouco mais polida que a nossa.
Apenas isso. Simples assim.
O uso do videogame deixa a criança mais inteligente? Metade dos
especialistas dizem que sim, outra metade diz que não. Ele deixa a criança mais
violenta? Metade fala sim, e metade fala não. Games deixam crianças mais
ansiosas? Sim! Videogame vicia? Com certeza! Devido a esse tamanho estímulo que
essas gerações mais recentes recebem, eles serão mais inteligentes que a gente
quando chegarem aos 20 ou 30 anos? A resposta é: talvez sim, talvez não, a
resposta é uma folha em branco, não sabemos. Oras! Mas o filho do meu primo
estuda e ao mesmo tempo escuta música com fone de ouvido, e joga Minecraft no
iPad, e assiste a um vídeo do canal favorito do YouTube, tudo ao mesmo tempo de
forma simultânea. Tsc! Tsc! Não, cara pálida! Ele faz uma coisa de cada vez,
ninguém faz mil coisas ao mesmo tempo. Quer dizer, talvez a minha avó Elsa
tivesse sido sim multitarefa, pois ela criou meu pai e mais 5 irmãos, e
cozinhava, lavava, passada, arrumava a casa, produzia conservas e cerveja
artesanal para vender na cidade. Tudo ao mesmo tempo!
Analisar esses novos fenômenos da cena digital, destilar nossa
opinião e cair em argumentos simplistas é uma armadilha fácil e irresistível para
alguns desavisados. E vejo muitos "gurus de plantão" caírem nessa
arapuca. Por isso, entendo que devemos nos preparar, estudar, pesquisar de
verdade, e ter a lupa bem ajustada para tentarmos ter algum tipo de lucidez em
interpretar essa nova arena online. Seja muito cauteloso com relação ao que
pauta esses discursos sobre a revolução-tecnológica-do-futuro-que-já-chegou.
Vamos sempre tentar abandonar esse determinismo tecnológico e compreender as
tecnologias como parte dos desdobramentos socioculturais que envolvem redes de
pessoas, projetos e instituições. A sedutora ideia do TUDO MUDOU me parece um
tanto ingênua e essencialmente arrogante.
Temos hoje grandes pensadores que entregam a vida ao
entendimento dos processos e fenômenos da cultura digital, então por que não
segurar na mão desses nomes e analisar esses novos fenômenos à luz deles? Cito
aqui alguns deles apenas: Vinicius Pereira e Erick Felinto da UERJ, Henry
Jenkins, Gisela Castro da ESPM, Beatriz Polivanov da UFF, Nestor Canclini,
Manuel Castells, André Lemos da UFBA, Beth Saad da ECA USP, Pierre Levy. Tudo
gente graúda! Jogue os nomes deles no Google, YouTube, and have some fun. A
dica de ouro é: muito cuidado com o que se lê! Seja muito, mas muito criterioso
e não se impressione com mini-CVs gigantescos e cheio de termos bacanas.
Cuidado com fake news! Não é porque está na web, que é verdade, certo? O mundo
digital é um ecossistema infestado de falsos profetas, charlatões cibernéticos,
produtores ininterruptos de vídeos em HD e futurologistas baratos que fariam
inveja à Mãe Dinah (RIP).
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