quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Memórias de uma Raposa


Em meio aos meus problemas e devaneios estive com uma raposa, que me falou sobre a dor de ser quem é. Ela me disse assim: 

“Ser raposa dói, tens uma vida monótona caçando galinhas e sendo caçada por homens, as figuras humanas me espantam, me causam pânico, me torturam, julgam-se superiores pois eles possuem rifles. Não são bons amigos os que possuem rifles... mas um dia, uma única figura humana me apareceu como que vindo do nada, parecia frágil, não carregava consigo arma alguma, exceto talvez uma ingenuidade desmedida e a memória de alguém que amava, chorava deitado na relva.

Aprendi uma valiosa lição após os contatos com esse humano quase que desarmado: Algumas coisas podem ferir mais que as armas dos homens.

Descobri que aquele infante vinha de longe, envolvia-se em belas vestes e habitava um planeta pouco maior que um baobá. Falou-me certa vez desse amor que carregava, descreveu-a lindamente. Em minha cabeça pude imaginá-la, suas pétalas bem distribuídas em espiral em torno de um núcleo quase imperceptível, pude imaginar o vermelho dessas pétalas, o longo caule que sustentava sua nobreza e os quase imperceptíveis quatro espinhos, ao quais o meu príncipe não conseguia atribuir nem uma utilidade já que não acreditava realmente que eles a protegeriam das feras, apenas queria acreditar, queria que seu amor estivesse bem.

Ele buscava curar feridas no seu coração, feridas essas, causadas por esses quatro espinhos, embora nunca tenha me admitido que eles o causaram.

 Procurava um amigo. Ora, para que fosse meu amigo precisava antes cativar-me, pedi que me cativasse, ele precisava de um amigo e eu precisava de um significado para o trigo dourado dos campos. Talvez aqui eu tenha errado, buscando curar as feridas do meu príncipe eu acabei por me machucar.

Vinha todas as tarde visitar-me, sempre ao mesmo horário sob minhas recomendações. No começo desajeitado, não sabia bem o que fazer, sentava na sombra de uma árvore e estudava minha aproximação... Cativou-me, era agora único no mundo, era agora responsável por mim, o trigo não era mais uma simples matéria-prima, era uma representação dos fios do cabelo dourado de meu príncipe.

Parecia ter esquecido o antigo amor, os espinhos, não mais me preocupei com os machucados, eles pareciam nem existir mais. A aparência da ‘não existência’ não bastou e não o impediu de certa manhã anunciar sua partida. Mostrei-lhe dois importantes fatos aquela manhã.

Primeiro fato: ‘Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos’.

Segundo fato, sendo esse complemento e tão importante quanto o primeiro: 'Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas'.

Isso não o impediu de partir de volta ao seu amor, não o impediu de buscar aqueles quatro espinhos que agora possivelmente já conhecera as borboletas.

Passei dias olhando os campos de trigo, o tom dourado lembrava-me do cabelo de ouro do meu príncipe, deitada na mesma relva onde o encontrei chorando... chorei.

Tu só consegues entender a dor de ser raposa quando teu príncipe vai embora, te deixando apenas com o vento vespertino nos campos de trigo."


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