Preconceito é tudo o que a gente acha que sabe, sem nunca ter
vivenciado e sem nunca ter refletido sobre o assunto. O preconceito é um
pré-conceito e embora guarde evidente conexão com a discriminação, não é a
mesma coisa. Não é incomum que autores de doutrina e operadores do campo
jurídico confundam os conceitos, ao atribuir-lhes linear sinonímia.
O preconceito é algo
cultural, que opera no plano das consciências e que pode, sim, desencadear um
comportamento ou ação discriminatória. Não raro, eu tinha dificuldade de me
fazer entender em tal explanação por meus alunos e costumava, então,
exemplificar com um cidadão que, sendo dono de um restaurante, tinha grande
preconceito contra pessoas de determinada origem ou etnia.
Entretanto, jamais negou-se a atendê-los em seu estabelecimento
e seu comportamento nunca permitiu identificar, por ação ou omissão, marcas
discriminatórias com relação a tais clientes. O preconceito permaneceu vivo,
ainda que escondido, mas a discriminação capaz de ser identificada e tipificada
não se manifestou.
Este tema é tão relevante que a Constituição Federal do Brasil
dele cuida em seu primeiro título, dedicado aos princípios fundamentais. E o
artigo 3º que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (vejam bem: objetivos fundamentais) estabelece que um desses objetivos
(são apenas quatro) é "promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação". (A redação poderia ser melhor, pois mesmo que o preconceito
seja o gatilho que dispara a atitude discriminatória, não são a mesma coisa).
Se o comando da Lei, tão claramente enunciado, fosse respeitado por todos (se
fosse...) viveríamos, por certo, numa sociedade melhor.
Somos todos, sim senhor, pelo menos um pouco preconceituosos, na
medida em que agregamos à nossa consciência coisas que absorvemos da
convivência familiar e da educação que vamos recebendo. O que torna o
preconceito uma praga e um dano permanente às relações interpessoais é
justamente o fato dele ser um dado cultural, mas isso não o torna nem menos
injusto nem impede que ele seja trabalhado e removido de nossas consciências.
Cada vez que um de nossos
filhos ou netos não quer dormir e o ameaçamos com "o velho do saco",
estamos instilando nele uma fobia que provavelmente o acompanhará pela vida
afora.
Todos sabemos que não se
contrai o vírus HIV num simples aperto de mão, mas quando um soropositivo nos
estende a mão e não temos como não cumprimentá-lo, assim que possível corremos
para o álcool gel mais próximo.
O preconceito, enquanto solerte e camuflado, gera a hipocrisia,
estimula o que se fala à boca pequena, a maledicência da esquina, a insinuação
que cuida em não comprometer o seu autor. O preconceito, assim posto e assim
exposto, sem assumir-se e sem expressar-se na base do olho no olho, é uma das
formas mais abjetas de covardia.
Artistas, políticos e outras pessoas cuja vida os torna
necessariamente mais conhecidos e expostos, estão entre as vítimas preferidas.
Homens públicos, desde sempre, ou são considerados ladrões, homossexuais ou sua
mulher será infiel.
Se isso não
"colar", suas filhas serão devassas e seus filhos drogados. E se o
político, artista, etc, for solteiro e comprovadamente decente e honesto,
portanto sem mulher nem filhos para serem caluniados e difamados e sem que se
lhe possa atribuir a pecha de ladrão, ah...ele que se prepare, pois corre o
risco de que todo o tipo de baixaria sobre ele se abata.
Vivemos no século 21, mas com os mesmos preconceitos e futricas
da Idade Média. Ao escrever isso, estou pensando em situações próximas, tanto
do ponto de vista temporal quanto geográfico, porém o problema não é só local.
Recordo do caso de Franklin Delano Roosevelt, o único presidente dos Estados
Unidos que teve quatro mandatos consecutivos e que tornou-se uma lenda por
haver conseguido retirar seu país da Grande Depressão dos anos 30 e, ao morrer,
em 1945, ter legado a seu sucessor o saldo da vitória praticamente assegurada
na Segunda Guerra Mundial.
Pois bem, sendo Roosevelt
um ícone (chegou a vencer uma eleição em 47 dos então 49 Estados Americanos) e
em face de sua condição de cadeirante eventual (seria uma catástrofe tentar
difamá-lo diretamente), seus detratores assestaram sua artilharia contra sua
esposa Eleanor Roosevelt, uma mulher extraordinária (primeira embaixadora dos
EUA na ONU) e que mantinha uma relação homoafetiva com uma jornalista.
E daí? A
verdade, porém, é que as estratégias diversionistas dos preconceituosos não têm
limite.
O discurso sobre a identificação e a valorização da diferença é
mais fácil, mas o concreto respeito e tolerância (tolerância não como um favor,
mas como o efetivo reconhecimento ao direito de liberdade e opção de vida que
nossos iguais devem ter) ainda deixam muito a desejar.
Seres humanos não são iguais e é justamente o efetivo exercício
da liberdade que nos desiguala e constitui a tessitura capaz de tornar o mundo
melhor. Vamos combinar: esta vida seria muito chata e evoluiria muito pouco se
cada um de nós quisesse que os demais fossem nossas cópias. Valorizar a
diferença é, sobretudo, respeitá-la.
Quando não há esse
respeito e alguns insistem em vasculhar a intimidade e a vida pessoal dos
demais, o melhor é fazer o que alguns já fazem: ignorar os ignorantes, não
responder às provocações, pois responder seria como atribuir aos
preconceituosos o direito de intromissão.
Estou entre aqueles que acreditam que a educação pode nos tornar
menos preconceituosos. Nesse sentido, não apenas a escola formal, mas a classe
política, os presbíteros e pastores, as comunidades de sentido (a galera da
torcida organizada, a turma do pagode ou do rock de garagem, as confrarias da
esquina) e, principalmente a mídia e as famílias têm um papel essencial nesse
processo que deve ser, primeiro, de desconstrução das visões obtusas que levam
ao preconceito. E, por falar em mídia, o Diário Popular, em sua contracapa da
edição da última segunda-feira já oferece um bom exemplo disso, ao não
furtar-se a discutir e opinar sobre um tema que tradicionalmente é delicado e
espinhoso.
Pelotas bem que podia - por sua generosidade e sua esplêndida
tradição humanista - inscrever-se como um bom exemplo na luta contra os
preconceitos. E cada um de nós pode começar, desde logo, dialogando com nossos
filhos, nossos alunos e nossos amigos.
E quando a conversa for com as crianças
(infantes adoram e compreendem muito bem as categorias de "do bem" e
do "mal"), poderíamos lhes dizer, por exemplo, que um político
"do bem" é aquele que não é corrupto nem ladrão e trabalha para
cumprir suas promessas e resgatar compromissos que tornem melhor a vida das
pessoas de sua comunidade. O resto (resto mesmo) é preconceito.
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