O
ministro do Supremo Tribunal Federal liberou o processo que trata da
descriminalização das drogas no Brasil.
No dia 18 de junho o
ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes liberou o processo que trata
da descriminalização das drogas no Brasil. O processo só deve ser julgado no
segundo semestre deste ano, mas a ação do ministro finalmente dá alguns sinais
do desgaste político do combate às drogas no país. A luta contra as drogas é uma
das poucas constantes intocáveis no debate público brasileiro - que, em matéria
de segurança, se resume a promessas de maior policiamento e de "leis mais
rígidas".
Como Nelson Rodrigues
afirmava, o subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos. Igualmente,
as estatísticas de violência piores do que estados em guerra que vemos no
Brasil não se improvisam; foram construídas por décadas de combate ao tráfico
de drogas.
É comum apontar para as
interferências sobre os regimes políticos da América Latina causadas ou
apoiadas pelos Estados Unidos. Porém, o que não é comum é considerar o legado
mais duradouro dos EUA para seus satélites do sul: a exportação da guerra às
drogas e de sua violência associada.
No início dos anos
1970, quando a "guerra às drogas" de Richard Nixon foi formalmente
declarada, incluindo apoio logístico e militar (e intervenções armadas) para
combater o tráfico, a América Latina começava a deixar sua economia agrária e
partia para as cidades. O combate às drogas nesses países não teve apenas como
resultado colocar grupos fortemente armados no comando do comércio de drogas,
mas também moldou seu crescimento urbano, além de servir como controle militar
das populações pobres, que vivem em permanente estado de ocupação.
O impacto do combate às
drogas sobre a composição urbana da América Latina pode ser sentido claramente
em países como a Colômbia, onde as zonas rurais têm presença maciça das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e no México e no Brasil, onde os
cartéis e as quadrilhas estabeleceram seus feudos nos locais mais pobres das
metrópoles urbanas, que estão em permanente e literal estado de guerra.
No Brasil, em
particular, a guerra às drogas empurrou o tráfico cada vez mais para as zonas
periféricas e para as favelas - locais inicialmente de pouco interesse para a
polícia, uma vez que o objetivo era deixar os centros urbanos livres das
drogas. Com o estabelecimento das quadrilhas de tráfico de drogas dentro das
comunidades pobres, as polícias militares em todo o Brasil armaram acampamento
perpétuo nesses locais, efetivamente eliminando os direitos individuais dos
cidadãos pobres. E como o tráfico está sempre presente na vida da favela no
Brasil, ocorre uma tentativa de controle permanente da vida dos moradores desses
locais.
A criminalização da
pobreza tem vários efeitos: ela compreende revistas obrigatórias aleatórias,
invasões para busca e apreensão em domicílios sem mandado, remoções das casas
"irregulares" a qualquer momento e prisão por diversos motivos - geralmente
pelo porte de alguma quantidade mínima de droga, algo difícil de se evitar com
o convívio com o tráfico.
O tráfico, que se armou e se entrincheirou para lutar
contra a polícia, transformou as comunidades pobres em feudos. E, assim, a
batalha da Polícia Militar (que já usa armamento de guerra há décadas dentro do
país, muito antes de os americanos serem vitimados da mesma forma por sua
polícia) em todo o Brasil não é exatamente contra os traficantes, mas se trata
de uma tentativa de estabelecer seu próprio poder sobre a vida do favelado - o
que não necessariamente tem a ver com o combate ao tráfico e se transformou num
combate ao pobre. As estatísticas não mentem: dos mais de 550 mil presos no
Brasil, mais da metade não tem Ensino Fundamental completo (200 mil, por sinal,
cumprem pena sem terem sido julgados).
Inicialmente se tratava
de um objetivo conveniente: durante a ditadura e mesmo logo após o fim do
regime militar, era interessante para o governo controlar a vida dos pobres,
sua capacidade de organização e de trabalho. Servia até mesmo como controle
demográfico das favelas. Ao longo do tempo, contudo, o custo de aprisionar e
controlar a vida dos pobres no Brasil tem aumentado. Os currais humanos
chamados de prisões no Brasil já abrigam mais que o dobro de sua capacidade e
beiram o colapso. Já as favelas brasileiras cresceram tanto (em número de
habitantes tanto quanto em riqueza) que controlá-las já se tornou um buraco
negro de dinheiro.
Mas nada disso precisa
ser dessa forma. Os pobres não precisam ser tratados pelo governo como
criminosos e eles também não precisam se submeter aos traficantes de drogas. E
a proibição e a guerra às drogas estabeleceram monopólios regionais do comércio
em todo o mundo e criaram uma guerra pelo seu controle. Nem mesmo o governo é
capaz de continuar a socializar os custos crescentes desse conflito. Os 50 mil
homicídios anuais no país são insuportáveis. Ou a guerra às drogas acaba, ou
entramos em colapso social.
Nelson Rodrigues disse
outra frase que resumia perfeitamente a atitude do governo em relação à guerra
às drogas: "Se os fatos são contra mim, pior para os fatos". Chegamos
em um momento, porém, em que não é mais possível driblar os fatos.
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