domingo, 25 de julho de 2010

Vinicius: 30 anos sem o poeta da paixão



Se todos fossem iguais a você,
Que maravilha viver:
Uma canção pelo ar, uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar, a sorrir,
A cantar, a pedir a beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir, nem sofrer
Existiria a verdade, verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

Tom Jobim e Vinicius de Moraes

Marcus Vinicius de Moraes é um nome plural com o qual foi registrado e batizado um homem pluralíssimo. Sua obra escrita, falada e cantada, apreende o mais luminoso caleidoscópio de poesias sentidas, canções explícitas e letras primorosas que o século vinte poderia nos deixar de herança, e que um só homem deveria nos legar à lembrança. Das primeiras letras e poesias, nas décadas de 1920 e 30, às últimas produções no início da década de 80, quando faleceu, o que pode se falar de Vinicius é que, num afazer de mestre joalheiro, conseguiu transmudar a gema primordial, que abalizava ingenuamente a inspiração artística brasileira, em diamante bem dilapidado e aquilatado. Quer dizer, durante a maior parte de sua vida, se propôs modernizar a estética de nossa alocução, popularizando uma poesia assaz afetada e sofisticando uma música popular até então muito modesta.
Por isso, é incrível observar agora, quando completam três décadas da morte de Vinicius, a mídia não prestar as melhores homenagens ao chamado poetinha. Isto só mostra o quanto a mesma está voltada exclusivamente para o produto comercial do momento, sem mais considerar a importância de rememorarmos as nossas principais referências. A sorte é que, para quem quiser prestar sua própria homenagem, poderá alugar o filme Vinicius, do Miguel Faria Jr., e assistir um breve tributo ao grande artista. Poderá, também, adquirir a discografia de Nara Leão e ouvir as melhores interpretações de sua música. Poderá, ainda, correr até a livraria ou à biblioteca e ler um pouco da sua Antologia Poética. Enfim, é importante revisitar Vinicius de Moraes, ao menos para trazer de volta uma velha alegria aos nossos corações tão fustigados.
Se existiram movimentos modernos e pós-modernos na música brasileira dos últimos cinqüenta anos, isto se deve especialmente à influência das letras de Vinicius de Moraes. O principal letrista da bossa-nova, em várias fases, reformou o artifício de escrever letras para música, inserindo inteligência, malandrice e profundidade poética onde imperava sentimentalismo barato e chororô. A peculiar batida do violão de João Gilberto, aliás, teria pouco significado caso não estivesse presente a necessária modernização da palavra cantada, como se pode observar em Chega de Saudade, composição feita com Tom Jobim em 1958 e que inaugurou o estilo. Na verdade, quase todas as outras letras incorporadas ao movimento da bossa-nova, e que chegaram a fazer sucesso, foram derivações dos temas de Vinicius e/ou do seu estilo, bastando ler e ouvir hoje as obras de Carlos Lyra, Newton Mendonça, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Marcos Valle, Sérgio Mendes etc. Todos estes (incluso parceiros) e muitos que vieram depois, como Chico Buarque, Francis Hime, Edu Lobo e Caetano Veloso, tiveram Vinicius como base de aprendizado e imitação.
O próprio fim do movimento da bossa-nova se deve um pouco a Vinicius, quando compôs, juntamente com Edu Lobo, a canção Arrastão, e esta fora interpretada (em 1965) por Elis Regina no Festival de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior. De caráter burlesco, trazia aquela música um ar de Caymmi reconstruído, com jangada, arrastão, pescaria e mar, mas saltando definitivamente para fora da bossa costumeira e dando origem ao estilo difuso atribuído a várias formas de música nacional, que acabaram sendo unificadas em torno do nome MPB. O que, por fim, representou fortuitamente a continuidade da modernização musical brasileira, conferindo margem para o surgimento de outros movimentos importantes, como o Tropicalismo e o samba-rock. Sim, podemos dizer, sem medo de errar, que Vinicius de Moraes foi fator decisivo na ascensão e na queda da bossa-nova e, de quebra, um dos pais da MPB.
Pouco depois, ao tratar de temas não muito católicos, Vinicius chamou atenção para o Brasil profundo, aquele ainda amarrado às suas origens africanas, aos orixás e às mandingas. Expressões como “tristeza, camará!”, “atotô, abaluaiê” e “saravá”, passaram a participar de letras de canções importantes do artista, conhecidas como “Afro-sambas”, primeiramente nas parcerias com Baden Powell, depois com Toquinho no violão. É da época do Baden as majestosas canções Canto de Ossanha, Canto de Yemanjá, Canto do Caboclo da Pedra Petras e Canto de Xangô, além de Berimbau e Consolação, além da formosa música Samba em Prelúdio, que dizia “Eu sem você Não tenho porquê, Por que sem você Não sei nem chorar, Sou chama sem luz, Jardim sem luar, Luar sem amor, Amor sem se dar...”.
Como todos sabem, Vinicius de Moraes se notabilizou pela construção da poesia e da letra voltada para o amor, ou para tentativa de explicá-lo. Quem não conhece aquela máxima do autor que diz que o amor seria eterno enquanto durasse: “Que não seja imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito enquanto dure”. Ou daquela quadra fatal do Soneto da Separação que diz: “De repente do riso fez-se o pranto, Silencioso e branco como a bruma, E das bocas unidas fez-se a espuma, E das mãos espalmadas fez-se o espanto”. Mas tem aquelas músicas como, por exemplo, Minha Namorada, que podemos cantar para todas as mulheres com as quais gostaríamos de conquistar, com a certeza de estar indo pelo caminho correto. (“Você tem que me fazer um juramento, De só ter um pensamento, Ser só minha até morrer”). Agora, quer que a mulher nunca mais o esqueça, diga que seus olhos “São cais noturnos, Cheios de adeus, São docas mansas,
Trilhando luzes, Que brilham longe, Longe nos breus”, do Poema dos Olhos da Amada.
Com o parceiro Toquinho (um verdadeiro filho para Vinicius), em sua última fase, escreveu letras exatas e delirantes, tratando não só de amor exatamente, mas de outros temas do sentimento humano, como em As Cores de Abril, que trata da Revolução dos Cravos em Portugal. Tratando, também, de situações políticas avessas como em Paiol de Pólvora, escrita especialmente para a série O Bem-Amado, quando Paulo Gracindo – cujo nome real era Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo – interpretava um prefeito extremamente corrupto, o Odorico Paraguaçu. Tratando, ainda, de temas sociais como em A Terra Prometida. Por fim, nos últimos anos realizou com Toquinho um ambicioso projeto voltado para a criança, A Arca de Noé, com músicas memoráveis como A Casa: “Era uma casa muito engraçada, Não tinha teto, não tinha nada...”.
Sem dúvida, várias canções, como A Rosa de Hiroshima, se transformaram em clássicos do cancioneiro brasileiro. Não raramente podemos ouvir alguém cantar ou assoviar uma canção de Vinicius sem ao menos saber de sua autoria. Hoje muitos evocam a Garota de Ipanema como o essencial em Vinicius sem conhecer a extensão de sua obra, ou seja, sem apreciar a profundidade de temas e letras que, em muitos casos, atenuariam grande parte das aflições enfastiosas do cotidiano. Em O Operário em Construção, por exemplo, Vinicius traz à tona o conflito interno de um obreiro frente à sua obra e patrão, provando a igualdade entre os homens e sugerindo uma paz na justiça e na poesia, e não na violência: “Era ele que erguia casas, Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas, Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo, Que a casa de um homem é um templo, Um templo sem religião, Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia, Sendo a sua liberdade, Era a sua escravidão”.
O melhor amigo do homem, para Vinicius de Moraes, não poderia ser somente um cão, senão um cachorro engarrafado, como chamava o uísque. Em muitas oportunidades se mostrou íntimo desta mascote, em shows, durante entrevistas, em rodas de amigos etc., e nunca se importou de ser fotografado ou filmado empunhando um copo com generosa dose. Talvez por isso tenha sido demitido do seu cargo de diplomata pelo senhor Arthur da Costa e Silva (“Assunto: Vinicius de Moraes. Demita-se esse vagabundo”, dizia o memorando). Dentro de seu espírito de liberdade, viagem, bebida e mulheres (teve nove casamentos), usou e abusou das noites elegantes do Rio de Janeiro, de Los Angeles, Roma, Paris, e das luzes coloridas dos bares, fazendo-as momento de diversão e de inspiração. De fato, o poeta da paixão, acima de tudo, foi o artista da boemia, e, como disse Carlos Drummond, viveu realmente como poeta.

Djalma Araújo.

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Um comentário:

  1. Amo Vinícius! Assisti ao filme. Ele era um boêmio eterno. Levava, inclusive, o bar ao palco, nos seus shows. A parceria com Toquinho para mim foi uma das melhores, e o show com o trio Vinicius, Toquinho e Maria Creuza é o meu favorito.

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