domingo, 4 de julho de 2010

Coisas da língua portuguesa



Língua é coisa muito interessante e surpreendente. Vive e tem sua história, inçada de mudanças e de sobrevivências. O que mais surpreende na história das línguas são as sobrevivências. Vocábulos e locuções e formas às vezes escapam durante séculos às transformações que a língua vai sofrendo. Curioso, por exemplo, o caso da preposição com. Na sua clássica Gramática Latina, Napoleão Mendes de Almeida informa: “Cum – Exprime muitas idéias: concomitância, concordância, reciprocidade, ligação, reforço etc. Antigamente se escrevia com e é assim que aparece na composição”. Atualmente, a preposição com se pronuncia, o mais das vezes, cum. Quer dizer isso que a forma cum vem sobrevivendo à evolução ocorrida para a forma com. A maioria das pessoas diz cum em vez de com: “cum quê?”, “cum força”, “cum jeito”, “cum modos”.
No caso do advérbio de negação não, patenteia-se a força determinativa do uso predominante. Nas outras línguas filhas do latim, esse advérbio, evoluindo do latim non, assumiu formas diferentes. Em espa-nhol, no. Em francês, non. Em italiano, no (mas também non). As outras línguas europeias não oriundas do latim, mas pertencentes ao mesmo tronco indo-europeu (principalmente o alemão e o inglês), possuem esse advérbio bem parecido com a forma, falada e escrita, das línguas neolatinas: no em inglês, nein ou nicht em alemão.
O não português é o non do latim. Só que este non latino evoluiu também, na passagem para as línguas novilatinas, para num em muitas situações do seu emprego na linguagem falada. No Brasil é um fato de todos os momentos da fala da língua portuguesa. Todo mundo diz, em grande número de situações, num em vez de não. Mesmo pessoas cultas, bem educadas, pertencentes às camadas econômica e culturalmente superiores da sociedade falam assim: “num quero”, “num vou”, “num vi”. O advérbio só é empregado – pronunciado – na forma, digamos, culta, não em duas situações e casos: como reforço da frase ne-gativa (“num quero não”, “num vou não”, “num vi não”) ou como resposta lacônica a uma pergunta: “você quer?”, “não”. Se o respondente espichar a resposta, dirá certamente: “não, num quero não”.
De modo que escrever num em vez de não, sendo ato de fidelidade do escritor à forma predominante desse advérbio na fala do povo, é ato normal que num deve causar estranheza senão a ouvidos e olhares um tanto desavisados.
Uma das correntes linguísticas existentes em toda cultura é a que preconiza para a ortografia o sistema fonético. O escritor paulista Mário de Andrade (que se referiu certa vez à língua portuguesa como “a nobre língua do ão”), na sua prática mo-dernista, fiel ao critério fonético, escrevia milhor em vez de melhor, si em vez de se, e assim por diante.
O uso popular predominante nem sempre, porém, dever ser aceito. É o caso do adjetivo diuturno, ao qual a maioria das pessoas (mormente os políticos), enganada pela aparência e sonância do vocábulo, atribui significação errônea.

Alaor Barbosa.

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Um comentário:

  1. Um post bastante interessante. Sobretudo para quem não convive muito com essas variações. Eu, que vivo rodeado dessa miscelânea lingüística, vejo o texto tão interessante quanto essa apropriação "irresponsável", mas não menos eficiente, do falar.
    Um abraço.

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