Em História Eclesiástica, escrita no século
5, época em que a cidade de Atenas vive o seu momento de esplendor cultural, o
historiador Sócrates, o Escolástico, escreve: "Havia em Alexandria uma
mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Théon - matemático, astrônomo e
diretor do Museu de Alexandria -, que fez tantas realizações em literatura e
ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Havendo progredido na
escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a
ouvisse. E muitos vinham de longe para ouvi-la".
Inteligente, bela e erudita, Hipácia adotou
o ascetismo como padrão de vida. Vestia-se com sobriedade, usando com rara
elegância o manto dos filósofos: uma espécie de túnica branca despida de
ornamentos. Celibatária, não acumulou riquezas materiais e sua vida foi pautada
pela rigidez moral.
Principal representante do neoplatonismo do
seu tempo, dedicou-se a pensar o mundo das ideias em analogia ao mundo físico,
a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas
provocadas por Plotino. As teses estudadas e debatidas com alunos eram
reservadas, mas Hipácia também realizava conferências abertas que atraíam
homens poderosos, entre eles, Orestes, prefeito da cidade.
Nascida em uma cidade na qual diferentes
religiões conviviam, Hipácia era pagã. Raramente frequentava o templo. Muitos
de seus alunos eram cristãos, entre eles, Sinésio de Cirene, futuro bispo de
Ptolemaida. A religião jamais foi um impedimento na sua relação com eles.
Todavia, mudanças político-religiosas geram
em Alexandria uma sociedade em permanente tensão. A tolerância religiosa, antes
vivenciada, apresenta-se estremecida pelo radicalismo. Seitas são expulsas da
cidade e, cada vez mais, a população é insuflada contra pessoas de destaque que
poderiam ser consideradas uma ameaça à expansão do cristianismo. E é justo
nesse contexto social que Cirilo, bispo de Alexandria, resolve investir contra
Hipácia e seu confidente, Orestes.
Monges atiçados por Cirilo atacam Orestes. Há entre
o prefeito e o bispo da cidade uma violenta disputa política por poder e
influência nos destinos de Alexandria. Crente de que a filósofa representa a
grande força que ampara o prefeito, o bispo instiga seus prosélitos a
espalharem na cidade o boato de que Hipácia é uma feiticeira, que se vale de
magia negra para controlar Orestes. A mentira prospera. A boataria avança entre
as camadas mais simples da população urbana. Liderada por Pedro, o Leitor, uma
turba decide pelo linchamento da filósofa.
Numa tarde ensolarada de março de 415,
durante a Quaresma, Hipácia, então com quase 60 anos de idade, é retirada com
violência de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja
de Cesarion, antigo templo de culto a Júlio César. Ali, desnuda, tem sua pele e
sua carne arrancadas por afiados cacos de ostras. Acusada de feitiçaria, é
destroçada viva pela turba ensandecida. Morta, amputam-lhe os membros
inferiores e superiores. O que resta do cadáver é queimado em uma pira nos
arredores de Alexandria. A morte da última grande filósofa da antiguidade
clássica deixa toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos. Somente
será redescoberta pelo Renascimento.
Nada se sabe de Orestes, depois da morte de
sua mestre. Cirilo, pleno de poder, manda fechar os templos e proíbe a prática
de qualquer religião ou seita fora do cristianismo. Canonizado, é hoje
conhecido como São Cirilo de Alexandria.
O filme Ágora, de Alejandro Amenábor,
lançado no último Festival de Cannes, resgata a saga de Hipácia. Contudo, a
maior parte do seu trabalho intelectual jaz perdido. Sabe-se, porém, que ela
escrevera comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de
Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Da obra filosófica, nada restou
escrito por Hipácia. Muito do que discutia com os alunos era, por princípio,
mantido em segredo. O pouco que se conhece vem das cartas de Sinésio de Cirene,
ele próprio bispo cristão, mas capaz de se referir a uma pagã como "minha
mãe, minha irmã e benfeitora minha".
Filha de Théon, Hipácia superou seu pai e
mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento
filosófico neoplatônico.
É
considerada a última intelectual de relevância de Alexandria, centro da cultura
grega no mundo helenístico. A figura de mulher-filósofa - única mulher a
dirigir o Museu de Alexandria -, merece ser lembrada não para falar de uma
regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período
bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento
considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que
encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora de
Alexandria.
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