Para a médica Maria
José Araújo, o machismo e a desigualdade entre gêneros são alguns dos fatores
que explicam o fato de mulheres serem 74% da população que consome remédios
para transtornos psiquiátricos.
A cidade de Canoas, na região metropolitana
de Porto Alegre, recebeu uma série de formações em gênero e saúde mental
promovidas pelo projeto Girassóis. Os cursos, iniciados em março de 2014 e
divididos em três datas, capacitaram profissionais da saúde, da rede de
enfrentamento à violência contra mulheres e lideranças comunitárias. Uma das
pessoas que tornou essa medida possível foi a médica baiana Maria José Araújo,
que esteve na cidade para participar do Seminário “Gênero, componente essencial
na atenção à saúde mental das mulheres”.
Maria José formou-se em Pediatria e fez
mestrado em Saúde Mental Materna e Infantil na França, seguido de uma formação
em Ginecologia de Atenção Primária na Suíça. Ela é ativista pelos direitos das
mulheres e uma das fundadoras da Rede Feminista de Saúde, além de ter sido
coordenadora da área técnica de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde no
primeiro mandato do presidente Lula, e coordenadora, no Brasil, da instituição
internacional “Médicos pelo direito a decidir”. Em 2005, Maria José foi uma das
52 brasileiras indicadas pelo projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz.
A iniciativa selecionou mil mulheres ao redor do mundo todo indicadas para o
prêmio como forma de criticar o fato de apenas 11 mulheres o terem recebido
durante seus 113 anos.
Nesta entrevista, ela analisa as questões
que relacionam gênero e saúde mental, defendendo que as mulheres têm mais
problemas psiquiátricos (elas são 74% da população que toma remédios para estas
doenças) devido às desigualdades, violências e pressões sociais sofridas. As
políticas públicas voltadas à saúde mental, porém, não fazem esse recorte,
critica a médica. “Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a
autoestima das mulheres, de tentar interferir na questão da violência, no
autoconhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem”,
aponta.
Essa violência que as mulheres sofrem na
sociedade pode ser tanto física quanto psicológica. “É real a violência
psicológica. Tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as
mulheres às vezes nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não
deixa marca física, mas deixa marca emocional”, avalia a médica. Isso passa por
questões de autoestima, determinada sempre pelo “olhar masculino”, segundo ela,
que faz com que as mulheres tenham cada vez mais problemas de saúde. Confira a
entrevista completa:
Como começou o seu envolvimento com o
Projeto Girassóis?
Maria José: “A gente [ela e o Coletivo Feminino Plural] faz parte da mesma
rede, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, já trabalho
com o coletivo há muitos anos. E com o começo desse projeto, elas precisavam de
uma pessoa que tivesse uma visão de saúde mental distinta, que contemplasse as
questões de direitos humanos, gênero e vulnerabilidade, com outro olhar sobre a
saúde mental das mulheres. E eu venho trabalhando com isso há bastante tempo,
por isso me convidaram para ser consultora do projeto e fiquei muito feliz.”
Muitos profissionais da área parecem ainda
não ter formação nesse sentido, nem a percepção da relação entre gênero e saúde
mental. Como a senhora percebe essa questão?
Maria José: “É, na verdade as políticas públicas homogeneízam todo mundo.
Fora as políticas de pré-natal, parto e aborto, as políticas públicas de saúde
são políticas globais, que não contemplam essa questão. Não são elaboradas a
partir de uma percepção de que as mulheres têm determinantes da saúde
diferentes dos homens. Têm questões relacionadas à biologia e à socialização
que exigem políticas diferentes, com outros olhares, outras abordagens, outras
percepções. Quando sai uma política de saúde mental, ela sai para todo mundo.
Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres,
tentar interferir na questão da violência, no autoconhecimento, na tripla
jornada, na discriminação que as mulheres sofrem. [Essas políticas]
homogeneízam o que é desigual, e muitas vezes são inadequadas a visão e a
abordagem.
Então a mulher com sofrimento psíquico vai
permanentemente ao serviço de saúde e não consegue ter suas questões resolvidas
justamente por isso. Enquanto as políticas públicas não conseguirem ter essa
abordagem, mulheres vão continuar sem ter suas questões resolvidas.”
Isso tem também a ver com toda a questão da
autoimagem, da pressão da mídia e da sociedade sobre os corpos das mulheres?
Maria José: “Exatamente. O Brasil é um dos países do mundo em que mulheres
mais fazem cirurgias plásticas. A autoestima das mulheres é sempre baseada no
olhar masculino, são os homens que determinam o valor das mulheres e dão
status. Não é por acaso que é um dos países onde elas mais são consideradas
como objetos. Pelo comportamento, tipo de roupa, por essa questão da cirurgia
plástica. Eu estava em um debate onde uma das debatedoras disse que fizeram uma
pesquisa com as meninas de 15 anos e o presente que elas pedem nos aniversários
é botar silicone nos seios. Com 15 anos! É tão complicado isso, essa questão da
mulher como objeto. Eu achava até que isso tinha melhorado, mas nos últimos
dois anos acho que regrediu.”
Tem a questão da violência que é perpetuada
em casa, não apenas física, mas também psicológica.
Maria José: “E a violência psicológica não é nunca relatada. A física e
sexual, embora muitas mulheres não denunciem, outras o fazem. Enquanto a
[violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro
violências cotidianas: “Você é feia, burra, tem o peito caído, está gorda, não
entende nada, você é incapaz, não presta para nada”. Esse tipo de violência,
que é sutil, vai minando a autoestima das pessoas o tempo inteiro. Toda mulher
que sofre violência tem muito baixa autoestima, ou porque sofre violência há
muito tempo, ou porque a mãe já sofria violência e cresceu vendo aquilo. É real
a violência, tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as
mulheres, às vezes, nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não
deixa marca física, mas deixa marca emocional.”
Em comparação com outros países, se a
sociedade for menos machista, percebe-se uma diferença na saúde mental das
mulheres?
Maria José: “Eu acho que sim. Quanto mais as mulheres têm autoestima, são
menos discriminadas, se valem por elas mesmas, a saúde mental melhora demais.
As mulheres casadas que têm mais de três filhos, isso é um risco para a saúde
mental. Porque são elas que fazem tudo, cuidam da casa, criam as crianças
sozinhas, são elas que abortam, elas que gerenciam a casa. Quando chegam do
trabalho, se forem pobres, vão ter que fazer de novo tudo que fizeram na casa
da patroa; se não forem pobres, de qualquer forma têm que cuidar das crianças,
ajudar nos deveres da escola. É uma sobrecarga que não termina nunca. Então, o
casamento é um risco para a vida das mulheres. Infelizmente, essa é a
realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga de trabalho.
Eu tenho uma reflexão, acho que no Brasil a
maioria das mulheres de classe média e alta só está junto com os homens porque
têm empregada doméstica. É um amortecedor da falta de apoio, da falta de
divisão sexual do trabalho, porque os homens e os filhos não fazem nada. Tem um
círculo vicioso que as mulheres não conseguem sair, e aí é uma sobrecarga de
saúde mental. Por isso que elas são 74% dos consumidores de remédios
psiquiátricos, porque tem que ter alguma válvula de escape.”
E ao mesmo tempo, parece que muitas vezes
os problemas das mulheres não são levados a sério, e elas mesmas não percebem.
Maria José: “Elas muitas vezes não percebem o círculo vicioso em que
entram. Sabem que se sentem mal, mas não sabem por que. Não tem uma reflexão de
que é a vida dela que provoca aquele mal estar: a infelicidade, sobrecarga de
trabalho, violência. Há muitas mulheres hoje que conseguem perceber, mas é
lento o processo.”
Atualmente, os cuidados de saúde mental são
muito voltados para a medicalização. Quais os efeitos disso?
Maria José: “Eu sou médica, acho que alguns casos precisam de medicamento.
Uma depressão grave, severa, provavelmente tanto homens quanto mulheres
precisam de medicamentos, além do apoio de uma terapia, de um profissional. Mas
só pelo número já dá para ver que existe um abuso de medicação. Todas as
queixas das mulheres para ginecologistas, obstetras e psiquiatras, são
imediatamente medicalizadas. Uma pessoa que perdeu a mãe, por exemplo, tanto
homens quanto mulheres, é normal que a pessoa chore, sinta tristeza, sinta seu
luto. Mas o próprio manual de Doenças Mentais, o DSM, traz que 15 dias de luto
já é uma doença mental. Ou seja, transformam o que é do cotidiano do ser humano
em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização. Nessa sociedade
capitalista, pós-moderna, individualista, as pessoas não podem mais fazer seu
luto, de todos os tipos. Como é uma sociedade de supérfluos, de consumismo, que
tudo é temporário e descartável, os afetos também viraram descartáveis. Se seu
pai, mãe, companheiro ou companheira morre, você tem que, 15 dias depois, já
estar numa boa. É todo um conjunto de sintomas da sociedade atual, da
contemporaneidade.”
E essas questões de saúde mental afetam de
forma diferente em função da raça ou da classe social?
Maria José: “Que eu saiba, não tem nenhum estudo no Brasil que diga, por
exemplo, se as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos ou não. Na
minha cidade, Salvador, 70% das mulheres são negras, então… Eu não tenho dados
científicos, mas pode ser que sejam mais medicalizadas, porque têm acesso a
serviços de saúde que não são de boa qualidade, estão nas camadas mais pobres,
são mais discriminadas. É só ver o que aconteceu com a Maju, a mulher do tempo
no Jornal Nacional, que foi alvo de piadas discriminatórias. Tinha um
comentário que dizia: “onde eu posso comprar essa escrava?”, ou seja, estamos
num país totalmente machista e racista.
Então, isso acontece com uma mulher que
está no Jornal Nacional, que é uma mulher culta, que todo mundo elogia o
trabalho dela, e mesmo assim os comentários nas redes sociais são terríveis. Eu
fiquei chocada, eu imagino que podemos inferir que as mulheres negras tomam
mais medicamentos psiquiátricos, até porque as mulheres brancas são
discriminadas por serem mulheres, mas não por sua cor.”
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