Não
falarei sobre o que não deveríamos ouvir, como pode parecer. Comentarei o ruído
e o zumbido, “stricto sensu”. As mazelas do zumbido foram consideradas mais
graves que as do câncer pela OMS. Em pleno carnaval, falar de ruído pode
parecer grotesca provocação, porém a natureza é implacável.
Curiosamente,
há poucos dias o Plenário do Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre o tema.
Com preciosíssimas intervenções dos Ministros Luis Fux, José Roberto Barroso e
Marco Aurélio. Demonstraram que não dominam apenas o direito, como convém a
Ministros da Suprema Corte. “Notável saber jurídico”, mas algo mais é sempre
desejável, dada a magnitude humana e nacional das causas que lá aportam. E os
ministros apontados deram braçadas.
O INSS
pretendia, no recurso extraordinário 664335-SC, a que o Plenário deu
repercussão geral (a decisão será aplicada a pelo menos 1.639 processos
judiciais), afastar o pleito de segurados, vitimados por ruídos, à
aposentadoria especial. Nao haveria fonte de recursos. Há, disse a Corte. E
ruído (causa interna) e consequente zumbido (causa interna) são os fatores mais
agressivos aos valores constitucionais da vida, da saúde e à dignidade da
pessoa humana. Em consequência, a Corte firmou duas teses: (a) o fornecimento
de EPI (Equipamento de Proteção Individual) pelo empregador somente retira o
suposto da aposentadoria especial se efetivamente erradicarem a agressão
e (b) o trabalhador submetido a ruídos sempre tem direito à aposentadoria
especial. A segunda esfumaça a primeira, com razões emergentes da ciência,
porque esses equipamentos, por mais sofisticados que sejam, acabam sendo
írritos para os fins colimados.
O
relator, ministro Luiz Fux, foi à ciência: “Lesões auditivas induzidas pelo
ruído fazem surgir o zumbido, sintoma que permanece o resto da vida e que
inevitavelmente determinará alterações na esfera neurovegetativa e distúrbios
do sono. Daí a fadiga. O ruído origina-se das vibrações transmitidas para o
esqueleto craniano e através dessa via óssea atingem o ouvido interno, a óclia
e o órgão de Corti (Irineu Antônio Pedrotti). E Elsa Fernanda Reimbrechet
e Gabriele de Souza: “Com relação do estado psicológico (o ruído e o zumbido)
altera-o, ocasionando irritabilidade, distúrbio do sono, déficit de atenção e
concentração, cansaço crônico e ansiedade, entre outros efeitos danosos”. (…)
Como o estado psicológico de um indivíduo acaba alterando o bom funcionamento
de seu organismo, principalmente o que se relaciona à circulação
sanguínea e ao coração, a exposição excessiva ao ruido ocasiona diversas
modificações em seu estado mental de saúde (o zumbido é certamente a mais
agressiva, observação nossa), podendo provocar, principalmente, mudanças na
secreção de hormônios, o que influencia a pressão arterial e metabolismo,
aumento do risco de doenças cardiovasculares, como infarto agudo do miocárdio”.
Os outros ministros citados aprofundaram com memorável proficiência os estudos
metajurídicos. Os trabalhadores ganharam. Graças à Corte.
Mas,
evidentemente, se o zumbido é eterno, a aposentadoria especial é um direito que
não o resolve. Aliás, no silêncio da inércia, ele é ainda mais cruel. Muitas
pessoas, que padecem de zumbido e não dependem desse direito, amargam-no sem
esperanças. Há algum tempo fez-se uma passeata em São Paulo acerca do zumbido.
Contra a natureza, contra Deus? A ciência tem se desdobrado na procura de uma
cura ainda não alcançada. Mas, passeatas sempre são válidas, até por alguns
trocos de passagens de ônibus.
Sem
demérito dos pares, os três ministros citados imprimiram um norte correto e
justo a uma crucial questão biossocial. Todos os processos em tramitação, como
dito, serão conduzidos por essa decisão vinculante. Basta lembrar que um hoje
altamente ilustre representante do Ministério Público, quando jovem promotor,
disse-me que opinava desfavoravelmente aos pedidos dos trabalhadores fundados
em zumbido. Considerava-os fórmula cigana de obter o ócio antecipado. Como
poderia um simples “barulho” despencar sobre os ombros de nossa instituição
previdenciária?
Infelizmente,
há cerca de vinte anos o subscrior destas letras foi apanhado por esse
malfeitor oriundo de brenhas misteriosas. As dezenas de soluções
procuradas ou foram inúteis ou tíbias. Mascaramentos são máscaras como as
docarnaval. Seguem para o lixo na quarta-feira de cinzas. Em meu caso
específico, os mais eficientes medicamentos, apenas atenuadores do mal, são
tradicionais: rivotril, calmante e anti-ansiolítico e um analgésico para a dor
crônica (sim, não se pode negar a condição dolorida e a cronicidade de um
zumbido incessante), tramal, opioide leve, várias escalas abaixo da morfina,
mas objeto de ojeriza cautelosa dos médicos: afinal, vem da velha plantinha
oriental, único consolo para as terríveis dores dentárias que prostavam nossas
populações dos séculos passados: que o digam Baudelaire e o mais genial
escritor da língua inglesa, Tomaz de Quincey. E de seus igualmente terríveis
efeitos colaterais. E o ópio em pequena quantidade é indiferente para o
zumbido, embora também não possa ultrapassar, em geral, a média das prescrições
bulares. Esses procedimentos nos aliviam, porém cada qual tem sua maneira de
responder aos agentes medicamentosos, de modo que nenhum leitor fica estimulado
a trilhar o mesmo caminho.
Por
fim, a solércia do zumbido. O que os olhos não veem o coração não sente. A
vítima desse algoz oculto pelas sombras, porém, não poderia desejar que os
participantes de seu mundo social ficassem atentos ininterruptamente a algo que
não presenciam; que falem baixinho, não cantem ou não festejem o carnaval. A
esperança está na ciência, única verdadeira entidade revolucionária da vida
humana. E, segundo já observado, não descansa na procura de solver ou, pelo
menos, minimizar o que for possível do sofrimento dessa pessoas maltratadas
pela natureza ou pelo exercício de ofícios agressivos
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