domingo, 26 de julho de 2015

Uma mulher chamada Hipácia

Em História Eclesiástica, escrita no século 5, época em que a cidade de Atenas vive o seu momento de esplendor cultural, o historiador Sócrates, o Escolástico, escreve: "Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Théon - matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Havendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse. E muitos vinham de longe para ouvi-la".
Inteligente, bela e erudita, Hipácia adotou o ascetismo como padrão de vida. Vestia-se com sobriedade, usando com rara elegância o manto dos filósofos: uma espécie de túnica branca despida de ornamentos. Celibatária, não acumulou riquezas materiais e sua vida foi pautada pela rigidez moral.
 Principal representante do neoplatonismo do seu tempo, dedicou-se a pensar o mundo das ideias em analogia ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas provocadas por Plotino. As teses estudadas e debatidas com alunos eram reservadas, mas Hipácia também realizava conferências abertas que atraíam homens poderosos, entre eles, Orestes, prefeito da cidade.
Nascida em uma cidade na qual diferentes religiões conviviam, Hipácia era pagã. Raramente frequentava o templo. Muitos de seus alunos eram cristãos, entre eles, Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida. A religião jamais foi um impedimento na sua relação com eles.
Todavia, mudanças político-religiosas geram em Alexandria uma sociedade em permanente tensão. A tolerância religiosa, antes vivenciada, apresenta-se estremecida pelo radicalismo. Seitas são expulsas da cidade e, cada vez mais, a população é insuflada contra pessoas de destaque que poderiam ser consideradas uma ameaça à expansão do cristianismo. E é justo nesse contexto social que Cirilo, bispo de Alexandria, resolve investir contra Hipácia e seu confidente, Orestes.
 Monges atiçados por Cirilo atacam Orestes. Há entre o prefeito e o bispo da cidade uma violenta disputa política por poder e influência nos destinos de Alexandria. Crente de que a filósofa representa a grande força que ampara o prefeito, o bispo instiga seus prosélitos a espalharem na cidade o boato de que Hipácia é uma feiticeira, que se vale de magia negra para controlar Orestes. A mentira prospera. A boataria avança entre as camadas mais simples da população urbana. Liderada por Pedro, o Leitor, uma turba decide pelo linchamento da filósofa.
Numa tarde ensolarada de março de 415, durante a Quaresma, Hipácia, então com quase 60 anos de idade, é retirada com violência de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarion, antigo templo de culto a Júlio César. Ali, desnuda, tem sua pele e sua carne arrancadas por afiados cacos de ostras. Acusada de feitiçaria, é destroçada viva pela turba ensandecida. Morta, amputam-lhe os membros inferiores e superiores. O que resta do cadáver é queimado em uma pira nos arredores de Alexandria. A morte da última grande filósofa da antiguidade clássica deixa toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos. Somente será redescoberta pelo Renascimento.
Nada se sabe de Orestes, depois da morte de sua mestre. Cirilo, pleno de poder, manda fechar os templos e proíbe a prática de qualquer religião ou seita fora do cristianismo. Canonizado, é hoje conhecido como São Cirilo de Alexandria.
O filme Ágora, de Alejandro Amenábor, lançado no último Festival de Cannes, resgata a saga de Hipácia. Contudo, a maior parte do seu trabalho intelectual jaz perdido. Sabe-se, porém, que ela escrevera comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Da obra filosófica, nada restou escrito por Hipácia. Muito do que discutia com os alunos era, por princípio, mantido em segredo. O pouco que se conhece vem das cartas de Sinésio de Cirene, ele próprio bispo cristão, mas capaz de se referir a uma pagã como "minha mãe, minha irmã e benfeitora minha".
Filha de Théon, Hipácia superou seu pai e mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico.
 É considerada a última intelectual de relevância de Alexandria, centro da cultura grega no mundo helenístico. A figura de mulher-filósofa - única mulher a dirigir o Museu de Alexandria -, merece ser lembrada não para falar de uma regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora de Alexandria.

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