quarta-feira, 29 de julho de 2015

O ouvido é nosso principal inimigo

Não falarei sobre o que não deveríamos ouvir, como pode parecer. Comentarei o ruído e o zumbido, “stricto sensu”. As mazelas do zumbido foram consideradas mais graves que as do câncer pela OMS. Em pleno carnaval, falar de ruído pode parecer grotesca provocação,  porém a natureza é implacável.
Curiosamente, há poucos dias o Plenário do Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre o tema. Com preciosíssimas intervenções dos Ministros Luis Fux, José Roberto Barroso e Marco Aurélio. Demonstraram que não dominam apenas o direito, como convém a Ministros da Suprema Corte. “Notável saber jurídico”, mas algo mais é sempre desejável, dada a magnitude humana e nacional das causas que lá aportam. E os ministros apontados deram braçadas.
O INSS pretendia, no recurso extraordinário 664335-SC, a que o Plenário deu repercussão geral (a decisão será aplicada a pelo menos 1.639 processos judiciais), afastar o pleito de segurados,  vitimados por ruídos,  à aposentadoria especial. Nao haveria fonte de recursos. Há, disse a Corte. E ruído (causa interna) e consequente zumbido (causa interna) são os fatores mais agressivos aos valores constitucionais da vida, da saúde e à dignidade da pessoa humana. Em consequência, a Corte firmou duas teses: (a) o fornecimento de EPI (Equipamento de Proteção Individual) pelo empregador somente retira o suposto da aposentadoria especial se efetivamente erradicarem  a agressão e (b) o trabalhador submetido a ruídos sempre tem direito à aposentadoria especial. A segunda esfumaça a primeira, com razões emergentes da ciência, porque esses equipamentos, por mais sofisticados que sejam, acabam sendo írritos para os fins colimados.
O relator, ministro Luiz Fux, foi à ciência: “Lesões auditivas induzidas pelo ruído fazem surgir o zumbido, sintoma que permanece o resto da vida e que inevitavelmente determinará alterações na esfera neurovegetativa e distúrbios do sono. Daí a fadiga. O ruído origina-se das vibrações transmitidas para o esqueleto craniano e através dessa via óssea atingem o ouvido interno, a óclia e o órgão de Corti (Irineu Antônio Pedrotti).  E Elsa Fernanda Reimbrechet e Gabriele de Souza: “Com relação do estado psicológico (o ruído e o zumbido) altera-o, ocasionando irritabilidade, distúrbio do sono, déficit de atenção e concentração, cansaço crônico e ansiedade, entre outros efeitos danosos”. (…) Como o estado psicológico de um indivíduo acaba alterando o bom funcionamento de seu organismo, principalmente o que se relaciona à  circulação sanguínea e ao coração, a exposição excessiva ao ruido ocasiona diversas modificações em seu estado mental de saúde (o zumbido é certamente a mais agressiva, observação nossa), podendo provocar, principalmente, mudanças na secreção de hormônios, o que influencia a pressão arterial e metabolismo, aumento do risco de doenças cardiovasculares, como infarto agudo do miocárdio”. Os outros ministros citados aprofundaram com memorável proficiência os estudos metajurídicos. Os trabalhadores ganharam. Graças à Corte.
Mas, evidentemente, se o zumbido é eterno, a aposentadoria especial é um direito que não o resolve. Aliás, no silêncio da inércia, ele é ainda mais cruel. Muitas pessoas, que padecem de zumbido e não dependem desse direito, amargam-no sem esperanças. Há algum tempo fez-se uma passeata em São Paulo acerca do zumbido. Contra a natureza, contra Deus? A ciência tem se desdobrado na procura de uma cura ainda não alcançada. Mas, passeatas sempre são válidas, até por alguns trocos de passagens de ônibus.
Sem demérito dos pares, os três ministros citados imprimiram um norte correto e justo a uma crucial questão biossocial. Todos os processos em tramitação, como dito, serão conduzidos por essa decisão vinculante. Basta lembrar que um hoje altamente ilustre representante do Ministério Público, quando jovem promotor, disse-me que opinava desfavoravelmente aos pedidos dos trabalhadores fundados em zumbido. Considerava-os fórmula cigana de obter o ócio antecipado. Como poderia um simples “barulho” despencar sobre os ombros  de nossa instituição previdenciária?
Infelizmente, há cerca de vinte anos o subscrior destas letras foi apanhado por esse malfeitor oriundo de  brenhas misteriosas. As dezenas de soluções procuradas ou foram inúteis ou tíbias. Mascaramentos são máscaras como as docarnaval. Seguem para o lixo na quarta-feira de cinzas. Em meu caso específico, os mais eficientes medicamentos, apenas atenuadores do mal, são tradicionais: rivotril, calmante e anti-ansiolítico e um analgésico para a dor crônica (sim, não se pode negar a condição dolorida e a cronicidade de um zumbido incessante), tramal, opioide leve, várias escalas abaixo da morfina, mas objeto de ojeriza cautelosa dos médicos: afinal, vem da velha plantinha oriental, único consolo para as terríveis dores dentárias que prostavam nossas populações dos séculos passados: que  o digam Baudelaire e o mais genial escritor da língua inglesa, Tomaz de Quincey. E de seus igualmente terríveis efeitos colaterais. E o ópio em pequena quantidade é indiferente para o zumbido, embora também não possa ultrapassar, em geral, a média das prescrições bulares. Esses procedimentos nos aliviam, porém cada qual tem sua maneira de responder aos agentes medicamentosos, de modo que nenhum leitor fica estimulado a trilhar o mesmo caminho.
Por fim, a solércia do zumbido. O que os olhos não veem o coração não sente. A vítima desse algoz oculto pelas sombras, porém, não poderia desejar que os participantes de seu mundo social ficassem atentos ininterruptamente a algo que não presenciam; que falem baixinho, não cantem ou não festejem o carnaval. A esperança está na ciência, única verdadeira entidade revolucionária da vida humana. E, segundo já observado, não descansa na procura de solver ou, pelo menos, minimizar o que for possível do sofrimento dessa pessoas maltratadas pela natureza ou pelo exercício de ofícios agressivos

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