A vaca berra, o boi muge, o
cavalo relincha, a coruja pia, a ovelha bale, a abelha zumbe, o gato mia, o cão
ladra, o lobo uiva, o leão e sua sereníssima esposa, a Dona leoa, rugem
adoidado; a galinha cacareja, o galo canta, a cobra sibila, o porco ronca, o
pato grasna, a cabra berra, o macaco guincha, a hiena chora, o urso brame, o
camelo blatera, a cigarra chia, o grilo cricrila, a raposa regouga, o corvo
crocita, o jegue zurra, a onça urra, o papagaio palra, o peru gruguleja, o
ser-humano fala, canta, grita e…
…o
automóvel buzina.
Alto
lá!
Desde
quando automóvel pode ser comparado a animal, ó criatura esdrúxula, ó
energúmeno?
Vão
porventura internar este aqui impiedosamente no pinel, com seus choques
elétricos, lobotomias e tudo mais, incluindo drogas miraculosas, se ele
considerar o automóvel um animal mecânico? Saca só, me’rmão:
Ora o
automóvel realmente cai doente e tem lá seus dias de bom e mau-humor
animalescos. Tem gente que crê abertamente nisso. Porque considera seriamente
que o automóvel tem alma; que o automóvel acorda de bom e mau-humor; que o
automóvel é tão vivo quanto um cão de guarda e até mais; que o automóvel sente
e pensa. Entendeu rapaziada?
Muita
gente há de ter presenciado algum simca chambord sorrir lindamente. Se o simca
chambord sorri, minha chaleira deve assobiar alegremente. E a panela de pressão
lá de casa, quem diria, deve sibilar que nem cascavel.
Há
coisa mais afetiva e bela do que um colecionador de antiguidades com o seu
cadillac? Pois é: qual a primeira coisa que faz tal colecionador ao acordar às
sete da manhã? Ah, já sei: beija a mulher docemente? Ledo engano seu. Lança a
mulher de lado, e vai correndo até a garagem. Lá chegando, mira ternamente o
seu lindo cadillac recém-adquirido. Em seguida, acarinha-o suave e apaixonadamente
e dá-lhe tantos beijos, mas tantos ósculos de afetuosa admiração, que duvido
muito se os beijos de amor tenham igual valor. E o automóvel responde a toda
aquela demonstração de carinho, funcionando perfeitamente. Sorrindo. Se o dono
do veículo, ao contrário, mostra-se um bruto, um bronco, um insensível, porque
se levanta às sete, vai até a garagem e mira o automóvel fria e rapidamente,
entra nele e bate a porta rispidamente como se batesse rispidamente a porta da
ante-sala da Delegacia Fiscal, o que é que sucede, amigão? O automóvel
funcional mal, não pega nem a trancos e barrancos.
Não é que tenha algum mal
mecânico, não. Não pega porque não quer pegar. Embirrou com o dono. Tomou
assinatura com o condutor dele. E se o proprietário dele, diante daquela irremediável
pertinácia, o chuta ou xinga de lata velha, então, ah me’rmão, pode ser que não
pegue nunca mais. Automóvel maltratado é automóvel parado, diz o ditado.
As
coisas então tem alma? Albibo Forjaz de Sampaio crê, em sua Prosa vil,
religiosamente nisso. “A alma das coisas, sim, meu amigo! Tudo tem alma. O
verme, a estrela, a árvore, a pedra. Quem lhe garante que o fogo não tenha
risos e a chuva não tenha soluços? Quem lhe pode assegurar que as árvores,
eternas paralíticas, não sofrem angustiadamente? Quem lhe diz que as pedras da
rua, as areias da praia, a frontaria dos prédios não conciliabulem em noites de
frio e vento? Tudo tem alma. V. nunca a achou? É que nunca a soube procurar.”
(…) “E repare V. na diferença que há entre os móveis recém-compados e os velhos
móveis de família. Os primeiros são estranhos, não sabem os seus hábitos, não
conhecem o som dos seus passos. Uma cadeira nova é um móvel agressivo, sem
comodidade.
Agora pense V. nos velhos
móveis. Cada dia que passa eles redobram de carinho e afeto. Eles farão tudo
para lhe agradar. É por isso que os móveis de hotel são polidos, corteses, mas
não tem tepidez, falta-lhes amor.”
Por que
devia ser diferente com o velho automóvel da gente, desde que a gente o cumule
de mimos e graças a rodo?
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