quinta-feira, 24 de junho de 2010
Lembrança do povo
“O Povo” – eis a primeira figura, o primeiro agente de que se lembraram (embora não se somasse àquela iniciativa) por ocasião da proclamação feita pelos membros do Governo Provisório, em 15 novembro de 1889. Foi quando nasceu nossa República. Assim o responsabilizaram, ao Povo, pela queda de Dom Pedro II, de modo a escudar heroicamente a iniciativa solitária de uns poucos civis e militares numa manhã ensolarada e sem muita convicção. Autoritária, a Proclamação se valeu dos que não podiam protestar contra o uso indiscriminado do seu nome - a imensa massa amorfa e analfabeta do País -, para legitimar um ato indiferente ao seu cotidiano de miséria e abandono. Rezava o documento: “Governo proclamado pelo Povo”, com direito a um garboso P maiúsculo quando, vírgula, o redator deveria ter começado pelo segundo agente que discrimina, “O Exército...” Deste modo seria fiel ao que realmente se passou. Mas um fato pode se sair muito bem como uma farsa.
A Proclamação não foi evidentemente o único documento oficial a se valer do Povo, longe disso. É apenas o mais simbólico. O número de textos oficiais que evocam o Povo equivalem às constelações do céu. Proliferam nos arquivos históricos, nas repartições públicas, nas gavetas dos parlamentos e órgãos do executivo e legislativo, desde que se instituiu o Estado e o governo. Notas, discursos, constituições, manifestos, programas partidários e sabe-se lá o que mais evocam ávidos o Povo para, citando-o logo nas primeiras linhas, galvanizarem-se de legitimidade. Porque é isto: o Povo confere legitimidade. Eis como, de modo protocolar, funciona esta abstração denominada “Povo”, vértice da religião política, ao qual os homens de Estado e instituições públicas devem a sua obediência. Obediência meramente formal e na maioria das vezes conveniente. E, de fato, não passa o Povo, a massa, de uma espécie de deus-mendigo. A ele pouquíssimos dentre estes mesmos indivíduos e instituições rendem de fato a sua devoção, antes ou depois de alcançar os próprios interesses. Verdade seja dita: o interesse pessoal, egoísta, é o que determina o comportamento da maioria de “nossos representantes”, a cada eleição.
O Povo não tem cara. É apenas um conceito, a inspirar nos políticos (e nas oportunidades) os mais belos sentimentos e os mais nobres ideais coletivos. É verdade que aos poucos, num ritmo administrável, os homens e partidos que alcançam o poder vão tornando concretas as aspirações comuns. Tem-se por isso a sensação de que evoluimos, apesar dos freios. Trabalham, entretanto, à força de impulsos externos, nem sempre expontâneos, soltando a corda aos poucos e tardando a nossa felicidade conjunta. Têm muitos privilégios a perder. Mas criam leis e as executam sobretudo porque outra sorte não lhes resta, a não ser, pressionados pelas ruas e pela opinião, corresponder os anseios do eleitor; anseios estes captados pelas pesquisas de opinião: o mote deste ano será a segurança? O trabalho? A saúde? O meio ambiente?
Este que pergunta e se envelopa ao gosto do marketeiro – leia-se, especialista de mercado – é o candidato a homem público. O homem público é quase sempre um parente do camaleão, transmutando-se ao sabor da paisagem, quando não um despudorado comerciante. Além de coletividade e eleitor, o Povo enfim torna-se clientela, à qual prometem novos e antigos emplastos, a cada novo pleito. Não importa muito, na maioria dos casos, se tais paliativos não passam, apenas, de um conjunto de promessas tarimbadas e exercidas exaustivamente, eleição após eleição. Simples exercício de retórica. Também não importa a sua factibilidade: o que importa é manipular as ilusões, cujo mercado é gigantesco.
José Carlos Guimarães
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Postado por
William Junior
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18:52
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William,
ResponderExcluirUma excelente matéria.
As promessas sempre existiram, e até hoje vivemos de promessas, mas o povo é crédulo, e esquece as promessas de ontem, mas aceitam as novas promessas para o amanhã...
Adorei!
Bjs.
Rosana.