Cega, se diz feliz -uma análise psiquiátrica.
Desde adolescente que
esta mulher, hoje casada e com filhos, queria ser cega. Tinha obsessão por
isto, até que seu psicólogo realizou seu desejo. O caso pode ser visto em: http://www.jornalciencia.com/saude/corpo/5403-mulher-que-sonhava-em-ser-cega-tem-produto-de-limpeza-derramado-em-seus-olhos-por-seu-psicologo-hoje-cega-se-diz-feliz.
É muito comum, na
prática psiquiátrica, pacientes que querem ter alguma modificação corporal,
p.ex., anorexicos, ortorexicos, acromaníacos (querem se mutilar, cortar pernas,
braços, reduzir a mandíbula), dismorfofóbicos (nariz menor, querem orelhas
menos evertidas, pés menores, grandes lábios reduzidos, etc). São pessoas com
algum tipo de obsessão, e esta obsessão geralmente tem uma base em uma
ansiedade de natureza bipolar. Sem diagnóstico/tratamento psiquiátrico
adequado, só restou mesmo ao psicólogo, como se viu, “cumprir a vontade
do paciente”.
Este tipo de situação é
bem mais comum do que se imagina. Em minha prática psiquiátrica já vi pacientes
que só gostavam de relacionar-se sexualmente com mulheres obesas mórbidas,
outro só com mulheres amputadas, uma de minhas pacientes cortou, com gilete, os
grandes lábios (achava que eram exagerados), outra de nossas pacientes resolveu
desbastar a própria mandíbula com uma lixa mecânica (maquita), logo após ter
feito uma “autocirurgia” sobre o queixo, retalhando-o em cruz, rebatendo as
partes moles e aí atingindo o osso com a serra elétrica. Alguns chegam a
emascular-se (castração) e outros a enuclear os globos oculares.
Uma outra paciente, com
anorexia/bulimia nervosa, enfiava colheres e facas quentes no abdome, para
atingir a camada gordurosa (tecido adiposo subcutâneo) e assim “queimar a
obesidade”. Outra chegava a cortar os tecidos na crista ilíaca superior
(quadril) para ver o osso, coisa que ela chamava “ver meu trofeuzinho” (tinha
vontade ser magra como um esqueleto).
Tais obsessões devem ser
combatidas vigorosamente, tanto com medicações quanto com psicoterapia, o
paciente não pode ser “simplesmente satisfeito” em suas demandas, pois estas
são insanas. Por trás destas obsessões geralmente há muita ansiedade, muita
depressão, muita inquietação interior, o que faz com que o paciente não se
sinta feliz com as coisas normais da vida, amar, trabalhar, servir,
relacionar-se, divertir-se, e aí partem em busca de “novas sensações”.
Uma tentativa de minorar estas sensações ego-distônicas internas.
Como vimos acima, esta
obsessão pode fixar-se sobre qualquer parte do corpo, gerando as “obsessões
corporais”. A escolha da parte do corpo muitas vezes não é aleatória; por
exemplo, a paciente do queixo mutilado, aí acima, de fato, tinha ligeiro
prognatismo e ligeira protusão zigomática.
O paciente que gostava de obesas
mórbidas tinha tido, quando da primeira infância, uma babá obesa que o iniciou
na vida sexual precoce. A paciente que queria ficar cega, por exemplo, pode ter
tido uma experiência prazerosa na infância, com alguma pessoa querida que
fosse cega, uma pessoa que lhe deu conforto, uma pessoa cega que ela viu e que
a fez sentir-se calma (“seria tão bom ser como esta pessoa, ela é tão calma,
seus movimentos são lentos, ela vive numa paz interior, ela é cuidada por
todos, admirada por todos, todos querem ajudá-la, são solícitos com ela, ela
tem toda atenção que uma pessoa carente merece, ela é uma heroína de ser cega e
de conseguir dar a volta por cima, é glamouroso ser deficiente, chamar a
atenção, chamar a comiseração, chamar a admiração das pessoas”).
Pacientes que tenham
alguma obsessão deste tipo e que, além disto, tenham algum tipo de carência
intra-familiar, são mais propensos a buscarem este tipo de automutilação, uma
vez que nem seu sistema psíquico interno nem o apoio externo são muito
confortantes.
Em outros casos, a
“sensação de ter controle total” é importante para o paciente obsessivo. Muitas
anoréxicas nos dizem, enquanto internadas em hospitais psiquiátricos
quase à morte, que preferem morrer do que perderem o “controle sobre o próprio
corpo”. A obsessão envolve um prazer pelo controle e este prazer pode ser maior
do que o bem-estar corporal e até a vida.
Também,como foi dito
acima, esta obsessão, na maioria dos casos, é acompanhada por depressão, e o
paciente pode achar que vai sentir-se melhor enquanto tiver sua
obsessão/controle satisfeita. Aí ele pensa: “Eu me sentirei muito melhor depois
da mutilação”, ou algo do tipo “é melhor estar bem psiquiatricamente do que
estar bem corporalmente”. “Não adianta ter um corpo perfeito e ser infeliz”, é
outro tipo de pensamento.
Em muitos casos, estas
cirurgias, ou controles, ou obsessões satisfeitas, têm duração efêmera: logo o
sintoma da ansiedade/depressão/obsessão voltam e agora sobre nova base, uma
nova “mania”. Por exemplo, a paciente que descrevi aí acima, que achava que
tinha o queixo muito proeminente, e que o desbastou com uma lixa elétrica, após
atingir seu desiderato, passou a achar que, agora, seu próximo alvo seria
desbastar o arco zigomático (diz ela: “Ele é muito protuso”), e já estava
“estudando anatomia e cirurgia” para fazer sua próxima intervenção na região.
Por serem doenças
ligadas ao espectro do transtorno bipolar, muitas vezes, requerem em seu
tratamento, além da psicoterapia por parte do seu psiquiatra, de medicações,
ora normotímicas, ora serotoninérgicas (“anti obsessão”), ora “anti-drive”
(naltrexona, topiramato, antiglutamatérgicas), etc.
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