quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A vida imaginária


Uma das vantagens de envelhecer – existem algumas sim, sabiam? - é poder botar em prática aquilo que os orientais chamam de “desiludir-se”, no sentido real da palavra.

 Embora o termo tenha tomado um sentido negativo, desiludir-se não é ruim; na verdade, faz um bem danado. Assentamo-nos calmamente, tomamos um gole de água fresca e começamos a jogar fora as ilusões: conceitos ultrapassados e preconceitos, lembranças, modos repetidos de agir, mágoas, besteiras inúteis, sucatas antigas e tranqueiras gerais. De quebra, temos a chance de esvaziar a mochila carregada com as pedras do caminho, onde tropeçamos e estropiamos os dedões do pé.

 Como recompensa, vamos ficando mais leves, mais tolerantes com os outros e com nós mesmos; menos chatos, dogmáticos e implicantes.

Felizmente, por uma gentileza do destino, tive a sorte de ir esvaziando a minha mochila, assim como fizeram outros amigos hoje denominados sexagenários, com os quais vamos trocando impressões sobre a riqueza desse ritual típico do outono da vida. Porém, não somos todos afortunados. 

Com pesar, vejo que existem os que fazem o contrário: não só mantêm a mochila abarrotada de velhas pedras pontiagudas como também colecionam novos cascalhos pela estrada. De posse desses pedregulhos constroem fortalezas sombrias dentro das quais se escondem, emburrados e agarrados aos seus frágeis tesouros, a maldizer o mundo. 

No alto, sobre a ponte levadiça e o fosso dos crocodilos, uma placa enferrujada identifica o jeitão do morador: “Cuidado! Dono bravo!”.

Cenografias à parte – vício desse ex-roteirista –, vamos mapeando a rota percorrida e identificando os perigos da jornada. Percebo que a TV e sobretudo a publicidade são grandes culpadas pelo fornecimento maciço de pedras, tijolos e cimento para a construção daquilo que chamam levianamente de “felicidade”. 

O castelo fascinante da eterna juventude, por exemplo, anda muito em moda – seja no Facebook ou nas academias. Nada contra uma vida saudável na primeira, segunda e terceira idade, pelo contrário – desde que isso não vire uma obsessão. 

Vamos fazendo ginástica, alimentando-nos bem, livrando-nos dos estresses inúteis – porém aceitando o inexorável escorrer da areia na ampulheta do deus Cronos, aquele senhor compenetrado que nos lembra que, um belo dia, a coisa acaba mesmo. Zéfini.

Talvez seja por isso que sempre me divirto ao ver comerciais de velhinhos surfistas malhados dançando rock com velhinhas idem. Ou idosos em motos turbinadas, tendo na garupa mulheres maravilhosas – e mais jovens, claro. 

Desconfio de que os velhinhos malhados das propagandas pertençam ao mesmo público-alvo daquele comercial pós-Viagra, do gênero médico-milagroso, que termina com a enfática frase “sexo é vida”. (Se o cara que o criou tivesse vergonha na cara, diria: “Sexo é uma das boas coisas da vida, quando envolve amor e afinidade”. Mas nem sempre é assim. Às vezes sexo pode ser frustrante, automático, sem graça e até mesmo – em casos extremos – um compromisso obrigatório. É ou não é?).

Ora, senhor criativo publicitário: claro que sexo é vida. Como também é vida acordar com preguiça na segunda-feira. Ou então pegar um ônibus. Ou espirrar. Ou nadar. Ou comer sanduíche, tomar banho, cortar as unhas. Ou conversar fiado com um amigo. Ou escrever crônicas para um jornal, como faço agora. 

Até quando estamos à toa, pensando na vida, estamos “vivendo”, ou não? Só isso já bastaria para me deixar maravilhado. Prosseguimos vivos no turbilhão misterioso do minuto a minuto, hora a hora, dia após dia – desde aquele momento em que nascemos, enviados pelo Infinito feito cometas errantes rumo ao Planeta Azul. 

Vida, pra mim, é isso tudo, enfim – e não algumas coisinhas pretensamente especiais determinadas pela moda, pelas novelas ou pela publicidade.

Seriam cômicas se não fossem capciosas as milhares de mensagens que tentam nos empurrar conceitos do tipo “viver é isso” e “isso não é viver” – apenas para vender bugigangas. Com qual autoridade invadem os subconscientes da galera divulgando, impunes, tantas asneiras? Para ser “feliz” depois de velho devo obrigatoriamente possuir um off-road 4x4, trilhar despenhadeiros na Califórnia ou descer as corredeiras de um rio turbulento ao som de música histérica, parado no tempo com a aparência jovial dos 30 anos e sempre a sorrir como um idiota? É muita sacanagem o que andam fazendo com os pobres e incautos telespectadores.

A tal vida imaginária é mesmo uma pedra pesada na mochila. Ou pior: no sapato. Dura até quando saímos da frente da TV, tomamos coragem, nos livramos dela e pisamos no chão da vida real. Que alívio. 

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