Uma das vantagens de envelhecer – existem algumas sim, sabiam? - é poder
botar em prática aquilo que os orientais chamam de “desiludir-se”, no sentido
real da palavra.
Embora o termo tenha tomado um sentido negativo, desiludir-se
não é ruim; na verdade, faz um bem danado. Assentamo-nos calmamente, tomamos um
gole de água fresca e começamos a jogar fora as ilusões: conceitos
ultrapassados e preconceitos, lembranças, modos repetidos de agir, mágoas,
besteiras inúteis, sucatas antigas e tranqueiras gerais. De quebra, temos a
chance de esvaziar a mochila carregada com as pedras do caminho, onde
tropeçamos e estropiamos os dedões do pé.
Como recompensa, vamos ficando mais
leves, mais tolerantes com os outros e com nós mesmos; menos chatos, dogmáticos
e implicantes.
Felizmente, por uma gentileza do destino, tive a sorte de ir esvaziando a minha mochila, assim como fizeram outros amigos hoje denominados sexagenários, com os quais vamos trocando impressões sobre a riqueza desse ritual típico do outono da vida. Porém, não somos todos afortunados.
Felizmente, por uma gentileza do destino, tive a sorte de ir esvaziando a minha mochila, assim como fizeram outros amigos hoje denominados sexagenários, com os quais vamos trocando impressões sobre a riqueza desse ritual típico do outono da vida. Porém, não somos todos afortunados.
Com pesar, vejo que existem os que
fazem o contrário: não só mantêm a mochila abarrotada de velhas pedras
pontiagudas como também colecionam novos cascalhos pela estrada. De posse
desses pedregulhos constroem fortalezas sombrias dentro das quais se escondem,
emburrados e agarrados aos seus frágeis tesouros, a maldizer o mundo.
No alto,
sobre a ponte levadiça e o fosso dos crocodilos, uma placa enferrujada
identifica o jeitão do morador: “Cuidado! Dono bravo!”.
Cenografias à parte – vício desse ex-roteirista –, vamos mapeando a rota percorrida e identificando os perigos da jornada. Percebo que a TV e sobretudo a publicidade são grandes culpadas pelo fornecimento maciço de pedras, tijolos e cimento para a construção daquilo que chamam levianamente de “felicidade”.
O castelo
fascinante da eterna juventude, por exemplo, anda muito em moda – seja no
Facebook ou nas academias. Nada contra uma vida saudável na primeira, segunda e
terceira idade, pelo contrário – desde que isso não vire uma obsessão.
Vamos
fazendo ginástica, alimentando-nos bem, livrando-nos dos estresses inúteis –
porém aceitando o inexorável escorrer da areia na ampulheta do deus Cronos,
aquele senhor compenetrado que nos lembra que, um belo dia, a coisa acaba
mesmo. Zéfini.
Talvez seja por isso que sempre me divirto ao ver comerciais de velhinhos surfistas malhados dançando rock com velhinhas idem. Ou idosos em motos turbinadas, tendo na garupa mulheres maravilhosas – e mais jovens, claro.
Talvez seja por isso que sempre me divirto ao ver comerciais de velhinhos surfistas malhados dançando rock com velhinhas idem. Ou idosos em motos turbinadas, tendo na garupa mulheres maravilhosas – e mais jovens, claro.
Desconfio de que os
velhinhos malhados das propagandas pertençam ao mesmo público-alvo daquele
comercial pós-Viagra, do gênero médico-milagroso, que termina com a enfática
frase “sexo é vida”. (Se o cara que o criou tivesse vergonha na cara, diria:
“Sexo é uma das boas coisas da vida, quando envolve amor e afinidade”. Mas nem
sempre é assim. Às vezes sexo pode ser frustrante, automático, sem graça e até
mesmo – em casos extremos – um compromisso obrigatório. É ou não é?).
Ora, senhor criativo publicitário: claro que sexo é vida. Como também é vida acordar com preguiça na segunda-feira. Ou então pegar um ônibus. Ou espirrar. Ou nadar. Ou comer sanduíche, tomar banho, cortar as unhas. Ou conversar fiado com um amigo. Ou escrever crônicas para um jornal, como faço agora.
Ora, senhor criativo publicitário: claro que sexo é vida. Como também é vida acordar com preguiça na segunda-feira. Ou então pegar um ônibus. Ou espirrar. Ou nadar. Ou comer sanduíche, tomar banho, cortar as unhas. Ou conversar fiado com um amigo. Ou escrever crônicas para um jornal, como faço agora.
Até quando estamos
à toa, pensando na vida, estamos “vivendo”, ou não? Só isso já bastaria para me
deixar maravilhado. Prosseguimos vivos no turbilhão misterioso do minuto a
minuto, hora a hora, dia após dia – desde aquele momento em que nascemos,
enviados pelo Infinito feito cometas errantes rumo ao Planeta Azul.
Vida, pra
mim, é isso tudo, enfim – e não algumas coisinhas pretensamente especiais
determinadas pela moda, pelas novelas ou pela publicidade.
Seriam cômicas se não fossem capciosas as milhares de mensagens que tentam nos empurrar conceitos do tipo “viver é isso” e “isso não é viver” – apenas para vender bugigangas. Com qual autoridade invadem os subconscientes da galera divulgando, impunes, tantas asneiras? Para ser “feliz” depois de velho devo obrigatoriamente possuir um off-road 4x4, trilhar despenhadeiros na Califórnia ou descer as corredeiras de um rio turbulento ao som de música histérica, parado no tempo com a aparência jovial dos 30 anos e sempre a sorrir como um idiota? É muita sacanagem o que andam fazendo com os pobres e incautos telespectadores.
A tal vida imaginária é mesmo uma pedra pesada na mochila. Ou pior: no sapato. Dura até quando saímos da frente da TV, tomamos coragem, nos livramos dela e pisamos no chão da vida real. Que alívio.
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