Talvez uma das características mais importantes para a dinâmica das
civilizações seja a sua natural capacidade de reinventar-se. Todo ser vivo,
para continuar existindo, ou passa por um processo de adaptação ambiental ou
altera-o de modo a assegurar a própria sobrevivência e a de gerações futuras.
Em termos social e político a lógica da sobrevivência não escapa à regra.
A Revolução Francesa (1789) foi uma dessas reações de ruptura contra um regime
saturado. O autoritarismo do rei Luis XVI, a corrupção, altos impostos para a
sustentação de uma elite parasitária, aliado à decadência da aristocracia,
acirraram os sentimentos por mudanças imediatas, originando a tomada de poder
pela burguesia, com a consequente eliminação de todos os representantes do
absolutismo capitulado.
As decapitações, particularmente a de Luis XVI, que foi
guilhotinado em 21 de janeiro de 1793 – tendo o corpo sido jogado no fundo de
um fosso, coberto com uma camada de cal e, por cima desta, uma forte camada de
terra –, representou, simbolicamente, o rompimento decisivo e irreversível com
o “Ancien Règime”. Em um período bem anterior, mas igualmente relevante para a
humanidade, surgiu, em 1215, a Magna Carta inglesa, que completou 800 anos no
último dia 15.
Apesar de não ter havido a deposição ne a eliminação do rei
João, conhecido como “Joao Sem Terra”, é fato que representou o rompimento com
os desmandos, tendo os barões ingleses imposto limites ao poder real, forçando
o rei a assinar o “Artigo dos Barões”, conhecido como Magna Carta. Mais
modernamente, circunstâncias políticas e sociais culminaram com acontecimentos
de grade afetação na história recente das sociedades.
As duas grandes guerras
mundiais (1914-1918 e 1939-1945) provocaram profundos rompimentos e mudanças de
paradigmas. Na Rússia, a Revolução de 1917, com a tomada do poder pelos
bolchevistas, deu-se em consequência da opressão do czarismo, da fome, da
miséria, do extremo distanciamento e servidão da classe operária pela nobreza.
Essas calamidades todas foram agravadas com a entrada da Rússia na Primeira
Guerra Mundial.
Os ideais da revolução de outubro passam a servir de inspiração
para outros movimentos revolucionários, notadamente com o advento da crise do
capitalismo, em 1929. Também nessa época, surgem implementações de regimes
ditatoriais, ditos nacionalistas, principalmente com o descrédito das economias
liberais.
Durante os anos de 1950 e 1960 percebe-se uma relativa tranquilidade
e estabilização do capitalismo, para, a partir dos anos 1970, eclodirem novas
turbulências econômicas. A partir dos anos 1990, percebe-se o desmoronamento do
sistema comunista, levando a humanidade a acreditar que o capitalismo seria o
regime apropriado ao desenvolvimento social e econômico.
Essa ilusão não tarda
muito a decepcionar e a partir dos anos 2000 o capitalismo mostra-se,
globalmente, em crise e revela-se como um grande fomentador das desigualdades e
da selvageria, no sentido em que se nutre da miséria e da exclusão social. O
resultado, por óbvio, é a natural movimentação no tabuleiro desse jogo de
poder, necessário à sobrevivência política, social e econômica.
A cada eleição,
notadamente na Europa, percebe-se a alteração do cenário político em cada país,
de acordo com cada peculiaridade. Em uns, há a ascensão da direita e da extrema
direita; em outros, percebe-se, há a ascensão ou o retorno de grupos políticos
socialistas – como Portugal, Espanha, Grécia.
Em comum, a necessidade de
sobrevivência institucional e social.
No Brasil, após longo período de
intolerância, opressão e cerceamento às liberdades civis e políticas, a
abertura política e a instauração da democracia, confirmada com a Constituição
de 1988, parece que não passamos por um processo histórico-político-social que
seja capaz de representar, verdadeiramente, uma mudança na nossa configuração
social.
Essa sensação de constante “dejá vu” não é manifestada apenas pelo não
rompimento, não punição, nem em razão da não eliminação dos agentes sociais e
políticos existentes e atuantes no período do Estado repressor. A sensação e
mesmo a percepção de um continuísmo político também não se limita ao fato de
permanecer no poder muitos desses remanescentes do regime que, retoricamente,
propagamos ter combatido e eliminado. Creio que a maior prova de atamento ao
“ancien régime” resida no aprisionamento e subserviência às ideias absolutistas
e alienadoras, resignadamente assimiladas e propagadas pela sociedade atual,
que elege políticos que defendem a volta da ditadura, a prisão perpétua, pena
de morte, redução da maioridade penal, etc.
Creio não ser exagerado dizer que
as movimentações sociais e políticas que ocorrem no Brasil sejam impulsionadas
não em direção ao futuro, mas para o retorno a um passado situado em um dos
períodos mais abomináveis da história das civilizações.
Todos os acontecimentos
políticos atuais nos remetem a essa constatação. Se, por um lado, houve o fim
da opressão oficial instituída pelo regime militar que governava o país,
possibilitando eleições para que o povo pudesse escolher seus representantes,
há, de outro lado, a continuidade da opressão sob o manto de uma
pseudodemocracia representativa.
Primeiro, as ideologias militares da opressão
e do totalitarismo continuam com seus representantes nas três esferas de poder,
notadamente no Congresso Nacional.
Segundo, a forma como se deu a “ruptura” com
o regime de exceção, através da Lei de Anistia que assegura a impunidade de
criminosos que, em outras nações, foram punidos com o fuzilamento, prisão, enforcamento
ou decapitação, transmite à sociedade a impressão de que nada do que fizeram
foi errado. Talvez por isso, principalmente nos legislativos (nacional e nas
unidades federativas) há uma infestação de políticos representantes de ideias
reacionárias e obscurantistas, por um lado, defendendo a doutrina da repressão
máxima, da instauração de um Estado-policial e, por outro lado, os
fundamentalistas fanáticos religiosos que aspiram a permanência no poder
através da instituição de um Estado alicerçado na ideologia do medo, tendo como
aparato de controle social a concepção bíblica do “pecado”.
Para tanto, uma de
suas estratégias é a de serem defensores dos “valores das famílias”. Não se
conhece na história política do Brasil um período tão catastrófico, tão
deplorável, tão falido e arruinado no que se refere à qualificação da
composição política atual.
Tudo é agravado no sentido de aniquilar as nossas
esperanças quando analisamos as ideias da classe média e alta do Brasil. A
chamada “elite” parece ter feito um pacto coletivo com a idiotice e nos faz
desacreditar na possibilidade de algum lampejo de luz no final dessa abissal e
atemorizadora escuridão.
Restariam os movimentos estudantis, que tanto
protagonismo fizeram durantes importantes épocas históricas de nosso passado
recente. Entretanto, com os fins das utopias, gerando uma sociedade de zumbis
programados a repetir jargões sem capacidade de análise crítica, mas sempre em
sintonia com os mandamentos emanados dos “politicamente corretos”, esses
movimentos foram cooptados e adestrados pelos governos e os interesses de
controle político e social.
Basta lembrar que, neste ano, o congresso da UNE
(União Nacional dos Estudantes) foi lançado de dentro do palácio do governo do
estado de Goiás, em indisfarçável subserviência e obliquação de seus fins e em
afronta ao seu histórico. O escritor Ariano Suassuna, expressando o seu
desencanto e o fim das esperanças em uma sociedade e uma classe política
decentes, disse que a única solução possível seria a luta armada, matando todos
os representantes dessa realidade política nefasta que nos corrói, dissolvendo
todas as instituições e rompendo com as normas vigentes que só servem para
preservar o “status quo”, substituindo-as por outras novas.
Entretanto, para
que isso ocorra, há que se pagar um preço muito alto, resultante em muitas
mortes e instabilidades social, política, econômica e diplomática por um longo
período. Possivelmente, não valha à pena. Entendo, entretanto, que o caos e a
completa falência do sistema político brasileiro possa ter algo de positivo,
pode representar, sim, um sinal iminente de esperança.
O físico inglês Stephen
Hawking, em sua obra Uma Breve História do Tempo, afirma que as partículas
atômicas, quando densamente saturadas, colapsam-se em si mesmas e se destroem,
dando origem ao surgimento de outras partículas novas. Acredito que esse
princípio, o da imponderabilidade quântica, deva ser aplicado às pessoas em
sociedade.
Espero que o ápice da falência e caos político e de consciência
social no qual nos encontramos imergidos, seja o prenúncio de uma explosão
acarretada pela saturação para que possamos, enfim, dar início a época do (re)
nascimento de uma nova ordem política e social.
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