quinta-feira, 12 de março de 2015

Nazismo à brasileira

Nos últimos tempos entrei em contato com uma face da vida de nossa população até agora pouco conhecida para mim, e talvez para vocês também. Na minha atividade de médico da saúde pública em São Paulo, venho observando um número imenso e crescente de pessoas com sérias dificuldades de saúde, impossibilitadas de trabalhar, ou até mesmo de subsistir, ou que tiveram sua saúde perdida em função de trabalho insalubre, e que tiveram o seu benefício previdenciário sumariamente negado ou suspenso. Aliás, benefício é um termo inadequado, pois na realidade, trata-se de um seguro, sim, como estes que fazemos para automóveis. Pagamos por isso, e a população mais pobre paga proporcionalmente mais do que as classes mais abastadas.

O trabalhador paga pelo seguro 10, 20 anos ou mais, e quando adoece ou sofre um acidente de trabalho, ou fica inválido, irá procurar a grande seguradora, o INSS, para ter a devida assistência pela qual pagou. Não se trata de paternalismo de Estado. É um serviço pago e tem contrato. Basta, para facilitar a compreensão, imaginarmos a situação de termos nosso carro destruído por qualquer evento e não recebermos a indenização contratada junto a uma companhia de seguros, sob a alegação pura e simples de que não existem danos a serem considerados.

Para o segurado receber o que lhe é devido, os peritos do INSS exigem um “laudo médico” (como se fossem incompetentes para entrevistar, examinar o doente e interpretar seus exames subsidiários). Ocorre que é imensa a dificuldade destas pessoas em obtê-lo. Se dependerem do atendimento público, podem esperar meses, correndo o risco de serem atendidos por profissionais que se julgam despreparados para a elaboração dos tais laudos.
Se procurarem um médico particular, frequentemente terão que pagar por isso, com seus parcos recursos. Mais que isso, os “peritos” do INSS exigem exames complementares muitas vezes desnecessários. E quando necessários, são também de imensa dificuldade para serem realizados nos prazos exigidos. Como se não bastasse, desqualificam sumariamente relatórios clínicos feitos por colegas, sem qualquer argumentação técnica ou científica.
O resultado é que o doente ou acidentado, além de pobre, perde sua condição de trabalho, perde seu salário (muitas vezes a renda da família), e não consegue ter acesso ao que lhe é devido, de um lado pelas dificuldades de atendimento ambulatorial no SUS, e por outro, pela sanha de peritos que se veem não na condição de técnicos, mas na condição de “guardiões dos cofres”, como um deles já se manifestou na minha presença, para o meu horror. Isto para não falar da dificuldade em obter assistência médica adequada e resolutiva, pela qual também paga por impostos diretos e indiretos.

Assim, pessoas e famílias são expostas à mais variada sorte de humilhações e danos secundários à sua saúde, chegando a uma situação de sofrimento crônico e penúria, que nos faz lembrar dos campos de concentração nazistas, para onde eram encaminhados, dentre outros, aqueles incapazes pelas mais variadas causas.

Do outro lado, vemos casos de pessoas “encostadas” no INSS que jamais reuniriam condições clínicas para tal. Os mecanismos dessa distorção são assunto para a Polícia Federal, e não vou me ater a isto, o noticiário tem estado recheado deste assunto.

Esta é a vida do trabalhador doente e do brasileiro pobre. Pelas mais diversas circunstâncias, ele é discriminado, excluído e condenado à própria sorte. Enquanto isso, economistas, administradores e alguns políticos persistem no discurso financista com o qual querem enquadrar o INSS na lógica de empresas privadas lucrativas, como se não existisse a última letra da sigla, que significa justamente social. Outras instituições como, por exemplo, os Conselhos Regional e Federal de Medicina mostram-se indignadas com a violência dirigida a certos peritos do INSS, mas não se manifestam e tampouco fiscalizam a atuação de peritos que se comportam como verdadeiros monstros, que negam ao doente até mesmo o direito que eles têm de saber o nome e o registro profissional de quem os examina.

Não, meus amigos, não estou falando de outra cidade ou outro país. Está aqui, no nosso quintal, montada e plenamente funcional uma máquina de fratricídio, de extermínio, difusa, não concentrada, e, por isso, difícil de ser notada, sob a cegueira deliberada da justiça, de várias instituições da sociedade, e contando, ainda, com a omissão da grande mídia. Mas afeta só os pobres e doentes.

Como descendente de sobreviventes dos horrores nazistas, tenho a sensibilidade à flor da pele. Não vou silenciar. São brasileiros que estão sofrendo. São meus irmãos.

Comente este artigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário