domingo, 19 de setembro de 2010

A insustentável leveza do ser



“Há um tempo em que precisamos abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É tempo de travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”, assevera Fernando Pessoa.
Do Eclesiastes extrai-se que não há nada de novo embaixo do sol. Todos os dias o sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar, em seguida, levanta-se de novo. Percebemo-nos aqui diante da impossibilidade de mudar algo, face à conscientização de que toda atividade humana é inútil. “Tudo é vaidade e vento que passa”. O Eclesiastes demonstra que a sabedoria não transforma as coisas na sua essência: conhecer a si mesmo só leva a um denso entristecimento, quando não se é capaz de vencer o tempo infindável.
Mas o que é a vida senão um rio irrompendo a terra, num atravessar que jamais se encerra? Em seu leito, pedaços de um orbe tantas vezes arrasado e refeito, a despeito de todas as coisas, de todos os dias, de todas as horas em que se faz preciso ou se é empurrado a descer ao abismo, à escuridão, para depois se erguer no reencontro interior, e o que nos cerca... E as águas do rio escorrendo, sabendo quantas feridas sangraram, e quantas oportunidades perdidas para expurgar a alma, nessa relatividade da existência.
Esse círculo vicioso do Eclesiastes, de arrebatamentos e de quedas, em que o tempo e o estudo não acarretam uma experiência valorativa, nem qualitativa, reflete somente a variação da indiferença diante à dinâmica da vida humana que se revela vazia. O mito do eterno retorno, também aludido por Nietzsche, suscita o homem a se despertar, enfrentar toda a dor que o conhecimento traz. O frio se apresenta assim, apenas como ausência de calor; as trevas, a ausência de luz. Luz esta, que descomedida, também cega. Tudo o que excede torna-se fugaz. O ente se desvenda em dualidade. Nem tanto para o bem, nem tanto para o mal. Nem anjo, nem demônio. Para o filosofo, a vida linear, distante das buscas e aventuras, infere ao indivíduo uma trajetória angustiante, um vácuo excêntrico.
A insustentável leveza do ser apregoada no livro de Milan Kundera, e que leva o mesmo título, tem Tomas como personagem central da trama. Um homem que se recusa
a levar o peso da vida, abdicando-se de qualquer convenção relativa aos problemas que se lhe defrontam no dia-a-dia. Ele escolhe ser leve, ser livre. Livre da visão compromissada com a política, os sentimentos, a religião. É nesta ótica que ele se torna incapaz de conhecer a liberdade, de conhecer “o peso da vida”. Peso, no sentido de desfrutá-la intensamente, de comprometer-se a se evadir do ciclo de mesmice, dos reiterados erros. Errar sim, mas com liberdade para assumir o erro e não cometê-lo novamente. Liberdade para uma busca insaciável de respostas e de acertos, na possibilidade de subsistir de forma sensata.
É tempo, pois, de abandonar “as roupas usadas, que já têm a forma de nosso corpo” e esquecer os velhos valores que afligem nosso espírito. Começa por reconciliar contigo mesmo. Perdoa não só os outros, pela dor, pela raiva que te causaram. Perdoa a ti mesmo, abandona o desejo de autopunição, talvez inconsciente; a vingança, a inveja, a maldade evocada quando do repúdio de dias infelizes. Só deste jeito, poderás crescer. Perdoa as tuas falhas, fracassos e medos. Destarte, saberás “o peso da vida” nesta insustentável leveza que não deve ter o ser. Afinal, conforme diz o poeta Sérgio Pietroluongo: “me sei breve, como o vento sopra sobre a espinha das águas”...

Cristiane Lisita.

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