quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Há Justiça para os pobres?



Ninguém ousa discordar de que a Justiça é demasiadamente morosa. As manifestações judiciárias, muitas vezes, somente são trazidas a público quando já não têm mais nenhum efeito prático, seja porque as partes já estão inativas ou (até) já faleceram, seja porque as circunstâncias mudaram de tal forma que a tal decisão é, agora, mais um estorvo que uma solução.
A solução para tal quadro não parece próxima.
E esse desalento é vislumbrado por uma de duas razões. Ou porque a celeridade da Justiça depende de quem não tem nenhum interesse nela ou porque, apesar desse desinteresse, há alguns abnegados que se ocupam de tal incumbência, mas o fazem a partir de um raciocínio absolutamente caolho.
Se não, vejamos.
Em vez de buscar a melhora da máquina judicial em sua totalidade, esses rapazes (são, muitas vezes, pessoas jovens e com pouca ou nenhuma experiência de vida para além dos muros dos foros) buscam parti-la e reparti-la. Segundo o modelo proposto, os juízes que cuidariam das causas das camadas mais pobres da sociedade não teriam, por exemplo, nenhuma noção do que se passa com a realidade dos banqueiros.
Como sabemos, a especialização leva a um melhor atendimento das especificidades de cada caso. E é por isso que, para ilustrar, ninguém estranha a existência de médico que cuida unicamente de joelho, mesmo sabendo que há um profissional que se ocupa de clínica geral.
Portanto, não se prega contra a especialização; ao revés, ela é preconizada pelos estudiosos mais sérios.
Mas, relativamente ao Judiciário, o que se verifica não é especialização. Especialização se dá quanto à matéria: Direito do Trabalho, Direito Militar, dentre outras. Vislumbramos, em verdade, é tratamento estanque de matérias que são absolutamente afins; é exclusão; é segregação de demandas cujas partes já são (e não é de hoje) marginalizadas.
A bordo da conversa mole segundo a qual a Justiça seria, doravante, mais célere, criaram-se os Juizados Especiais. Ali se cuidaria de causas de baixo valor e das que fossem menos complexas.
Ora, até mesmo os Nazistas, quando pretendiam encher as câmaras de gás onde se fulminariam com a morte milhares de pessoas simultaneamente, jamais confessavam. Diziam às pobres vítimas que estavam indo para um banho onde se eliminariam parasitas corporais (piolhos) e, em estando lá, o resto da história é conhecido.
Entre nós, já pretenderam separar os ricos dos pobres. Tal medida propiciaria um melhor aparelhamento da fatia à qual caberia o deslinde das grandes causas e o completo abandono da que cuidaria dos interesses da grande massa de deserdados.
E foi com esse intuito que se criaram as Cortes Arbitrais, que seriam instaladas para resolver as causas patrimoniais, deixando para a Justiça Comum as causas penais e afins. E o final disso é mais que previsível: o estiolamento do Poder Judiciário até que dele não reste mais nada que autoriza a chamá-lo de Poder.
Também é fruto do espírito isolacionista a construção de conjuntos habitacionais populares o mais distante possível dos bairros residenciais mais requintados. Mais grave que essas construções é quando fazem vista grossa ao surgimento de favelas onde, por duas razões principais, não há a menor condição de vida: a uma, porque são verdadeiras pocilgas, a duas, porque também são distantes dos locais de trabalho dessa população ou das áreas urbanizadas. A Vila Socó, de Cubatão (o local habitado mais poluído do mundo nos anos oitenta), é só um exemplo.
A criação dos Juizados Especiais, portanto, deve ser vista sob as mais diferentes perspectivas; inclusive sob esse aspecto crítico.
Ela seria até tolerável, sobretudo se se estivesse eliminando um mal maior: a nefasta morosidade da Justiça.
Contudo, em nome da informalidade e da celeridade, o direito das partes não tem tido o tratamento adequado.
A lei dispensa a concorrência de advogados quando a ação versar sobre objeto abaixo de certo valor. Mas quando isso ocorre, alguns magistrados federais, pretendendo que a tal informalidade somente milite em favor deles, deixam as partes atônitas (já que não têm o domínio técnico) quando extinguem processos a torto e a direito. Esse “morticínio” de processos se dá em razão de não cumprimento, no prazo e na condição determinados, de providências que poderiam ser cumpridas, por exemplo, em audiência. E, se fosse assim, melhor se atenderia o espírito da lei que criou os Juizados Especiais, já que dispensaria essas partes de despesas desnecessárias.
Se é verdade que os valores ali discutidos são mínimos, também é fato que aquilo é tudo de que as partes dispõem para viver. Tratar com menoscabo essas minguadas quantias é desvalorizar o esforço delas para construir a vida; é negar importância à própria vida delas; é, em última análise, desmerecê-las como cidadãos.
Mas não é só isso.
O Ministério Público Federal, sempre tão zeloso, deixou (e também não é de hoje) de comparecer às audiências. Nos Juizados Especiais Federais de Goiânia, não se conta com a presença do procurador da República mesmo quando é discutido o direito de pessoas que a lei coloca sob sua “assistência”. E essa ausência é, grosso modo, justificada com o singelíssimo argumento de que não dispõe de número de membros suficientes para atender à demanda.
Será se alguém duvidaria de que concursos e mais concursos seriam feitos para bem prover o quadro ministerial se o direito em discussão versasse sobre milhões ou sobre os grandes poderosos do País?
O grande Rui Barbosa já lecionava que “justiça tardia é injustiça qualificada”, o que impõe a todos os que militam na aplicação do Direito o combate à morosidade da Justiça. Mas mesmo essa busca obstinada pela celeridade não autoriza o atropelamento de regras que garantem a eficácia dos Princípios Constitucionais que, em última instância, asseguram a própria existência do Estado Democrático de Direito. Dentre eles estão o Princípio da Igualdade, o da Separação dos Poderes, o da Dignidade da Pessoa Humana, o do Devido Processo Legal, dentre outros.

Pedro Moreira de Melo.

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