domingo, 20 de março de 2011

Sobre o filho do Homem



Há muito, quando o homem começou a pensar, ele matutou sobre a razão dos sofrimentos e da morte. Matutou, também, sobre o significado da vida, das intempéries e, sem explicações plausíveis, terceirizou as responsabilidades. Eram os deuses que estabeleciam os desideratos. Se o deus da chuva quisesse, choveria. Se aprouvesse boa colheita, o deus da colheita permitiria. Havia muitos deuses, o da velocidade, o da guerra, o do amor, o dos mares, o da lascívia, o da bonança, enfim. Passaram os gregos e romanos e um dia globalizamos e centralizamos ocidentalmente a fé e as explicações com a chegada do filho do carpinteiro, o filho do Homem, que é como costumamos designar o chefe, o manda-chuva, o Homem. A história, criada por nós é edificante. O carpinteiro, homem do povo, homem simples e seu filho sábio, altaneiro, milagreiro, de enorme solidez moral e com doses inquestionáveis de doação e sacrifício. O filho do carpinteiro tornara-se rei pelas palavras, pelo exemplo, pelo poder de sublimação, perpassador de esperanças, tradutor da possibilidade do green card para a vida eterna.
Então, o homem simples, sandálias, vestes comuns – trouxe a palavra, mas palavra como metáforas que muitas vezes eram de difícil tradução para a gente comum, gente como a gente. Então, as autoridades religiosas esclareciam para nós, os comuns, gente sem luzes. Após Martinho Lutero foi possível a qualquer dos mortais a interpretação das mensagens truncadas. E, aí, abrimos um leque para cada interpretador. Eu, por exemplo, poderia criar minha própria elucrubação religiosa e fundar, sem muito sacrifício, a corrente Igreja Nossa Senhora da Anunciação. Por que não?
Quando minha avó, Maria, morreu em 1988, fui acompanhar o velório. Meus tios haviam-na conduzido a abraçar uma corrente evangélica. Era importante para a família que eu ouvisse o que o pastor tinha a dizer, afinal era eu o único médico entre todos os Anunciação. O pastor chegou em grande estilo: carro do ano, roupas e unhas impecáveis. O contraste com meus tios e primos era evidente. Meus parentes usando chinelos de couro ou havaianas, quando as mesmas não eram grife e calças estilo pega-pinto, nada tinham a ver com a apoteose da autoridade religiosa. Ele, teatralmente, começou a falar com a pompa e as reticências devidamente estudadas – “Hoje...Maria...devolveu a Deus aquilo que lhe foi emprestado. Sim... a vida não nos pertence...Ela nos foi emprestada....como usufruto...A vida não é nossa...é de Deus...Ele a emprestou e Ele a requereu... Maria partiu em paz...Pela simples razão que cumpriu todas as suas obrigações como esposa, como mãe...E não se esqueceu de suas obrigações com a Igreja. Eu pergunto a todos...Estamos preparados para a partida? ...Estamos em dia para a partida?”
Ao refletir mais uma vez sobre essa passagem, pensei sobre a capacidade criminosa de usarem as palavras do filho do carpinteiro, homem simples, sem oponências para fundos de arrecadação e pensei sobre como derrapamos moralmente em contar histórias sobre o filho do Homem...


por Jorge Anunciação.

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