

Eis um clássico dos desenhos animados e dos quadrinhos: quando o protagonista se defronta com um dilema, surge sobre seus ombros um anjo de um lado e um demônio do outro. Ambos concorrem em conselhos buscando influenciar a consciência – território do livre arbítrio. Em jogo, o pendor das ações. Se o ser humano fosse virtuoso por natureza, o demônio colocaria o tridente no saco e abandonaria o emprego. O problema é que não somos assim tão bonzinhos, e os argumentos do capeta são muito convincentes.
O grande talento do demoniozinho fictício é o de soprar em nossa orelha uma oferta irrecusável, aquela que sempre acena com a vantagem pessoal. O anjo, por sua vez, rechaça qualquer privilégio. Por exemplo, quando há uma fila enorme de automóveis em um engarrafamento, surge o dilema e começa o debate:
Capeta: Ô babaca, pega o acostamento e passa por todos!
Anjo: Nada disso! As pessoas na sua frente chegaram antes e merecem a primazia. Além do mais, segundo a lei, o acostamento não é pista de rodagem.
Capeta: A culpa do engarrafamento não é sua. Sai agora ou chegará atrasado!
Anjo: Se fosse previdente, teria saído mais cedo...
Capeta: Ó, acabou de passar um pela sua direita! Vai agora, antes que o acostamento engarrafe também!
Anjo: Não! Essa vantagem é ilícita!
É quando, no exemplo, a virtude arrisca ir para o brejo... Como a honestidade é a marca do anjo, ele reconhece que há vantagens para quem coloca seus interesses acima dos demais. Principalmente quando a regalia segue de mãos dadas com a impunidade: lei sem fiscalização só castiga os obedientes.
O anjo, representando o bem, pensa no outro. O demônio, em nome do mal, é egoísta. Em tese, se ninguém prejudicasse ninguém, todos seriam beneficiados. Na prática, a ordem é cada um por si e o sistema falho que nos livre!
Isso vale para os automóveis e para tudo: pedófilo e estuprador pensam no prazer, azar da vítima; o assaltante deseja os bens alheios, mesmo que incida em prejuízo para quem caiu em sua teia, ou mesmo lhe custe vida; o traficante conhece o preço social da fissura, e lucra com isso; o corrupto e o corruptor dão uma banana para a coletividade, e assim por diante. O demônio que habita o ombro quer nosso benefício exclusivo, imediato e ilimitado. Oferta muito tentadora.
Voltando ao trânsito, como todos já devem saber, um motorista atropelou de propósito dezenas de ciclistas em Porto Alegre. O ato, flagrado por câmeras de celular, repercutiu no mundo inteiro. Poucas vezes tive a oportunidade de testemunhar tamanha fúria e inconsequência. O anjo que deveria estar no ombro do cidadão só pode ter saído para dar uma volta, pois um mínimo de pensamento lógico, lúcido ou amistoso seria suficiente para evitar o que quase virou tragédia.
Sem querer justificar o injustificável, falharam também os anjos dos ciclistas que bateram com suas mãos na carroceria do automóvel antes de ele acelerar sobre a massa, atiçando as brasas até o ponto de labareda. Deve (ao menos deveria) estar pesando na consciência daquelas pessoas os ferimentos dos companheiros. Afinal, um conselho típico de anjo é o de não agredir ninguém, especialmente um desconhecido que parece apressado e furioso, pois a reação nem sempre é proporcional.
Anjo: Isso! Use esse artigo para dizer que venho perdendo terreno para o egoísmo; que as pessoas devem me escutar mais e cultivar a paz e a tolerância.
Capeta: Que nada, deixa pra lá, não te envolve... Nem foi contigo! Qual será a vantagem???
Por Rubem Penz.
Um belo texto que deve ser comentado aqui ou no dihitt.
kkkkkkkkkkk, essas horas sao muito fodas, parece que acontecem até com a gente... muito bom o texto...
ResponderExcluircara to te seguindo, se puder me segue tambem...
Top Cine HD