Primeiro passo de
autonomia que ocorre na vida, ao sair do útero, é pôr pra dentro o ar que está
em volta, respirar. Se isso nos sair bem, ensaiamos um segundo movimento,
comer, mantendo certa harmonia entre as duas atitudes. Essas ações, de
sobrevivência, marcam modos de ser, de se conectar com o mundo, indo do
apreensivo ao tranquilo, do prazeroso ao impossível. As oscilações são
próprias dessa navegação do dia e noite da vida.
Pois comer é ainda
mais complicado, pois precisa-se do outro, que me cuide, que me ame, que me dê
o que comer. Se ela nos der o peito nos momentos oportunos, de um jeito
apaixonado, aprenderemos não só a comer, mas também a abrir caminhos e fazer
conexões mundo afora. A mãe literalmente nos restaura com seu leite vivo, são
vivas as células de seu corpo que vão pra dentro do bebê. De verdade,
engolimos, comemos a mãe. Comer passa a ser prazer amoroso, e restaurantes não
são mais que extensões desses momentos primitivos da vida. Por isso eles são
importantes para corpo e espírito, eles restauram.
"Oh,
subalimentados dos sonhos/poesia é para comer" (Natália Correia, poeta
portuguesa). Oh, nós, subalimentados da alma/poesia é para nutrir (produção
caseira). Ao longo da vida enxergamos que comer está muito mais ligado aos
prazeres do que, apenas, alimentar células. Prazeres não só da gula, prazer de
receber afeto, de ser amado, de amar, trocar, aprender. E assim vamo-nos
matando diariamente, em eterna negociação, dentro de nós mesmos. O dilema
cotidiano: comer o quê, agora ou daqui a pouco? Para os que têm o privilégio de
escolher, sempre é uma escolha que pode mudar o dia. Tem também aquela
expressão, autoexplicativa: deve ter sido alguma coisa que comi.
Às vezes comer
sozinho é necessário. Já cozinhar só para si não tem o mesmo sabor, pois é algo
que envolve corpo, alma, mente, espírito, ora é nossa morfina, ora, ritalina. A
comida é também partilha. Na infância aprendemos a dividir a mesa somente com a
família. O fato é que dividimos a mesa com poucas pessoas, na vida! Almoçar com
alguém é uma coisa, jantar já é outra, completamente diferente. O café da manhã
é sublime, para alguns, terror e para outros, redenção.
Comer é bem mais do que comer.
Comer é bem mais do que comer.
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