quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A religiosidade de Darwin


Por ocasião da morte de Charles Darwin, em abril de 1882, aos 73 anos, houve certa apreensão com relação ao local do seu funeral. Ele era uma celebridade reconhecida no mundo todo, membro da Royal Society, e, apesar das dúvidas que pairavam sobre sua crença religiosa, parecia não haver local mais adequado que a Abadia de Westminster, em cujo interior fora sepultado, entre outras ilustres personalidades, Isaac Newton. As autoridades da Igreja Anglicana foram, de certa forma, postas à prova, inclusive via uma campanha na imprensa, e, com a permissão do funeral e a autorização para a construção do túmulo de Darwin nas proximidades do memorial de Newton, selariam uma espécie de aceitação tácita da teoria da evolução.
Charles Darwin que, aos 20 anos, começou estudando medicina e chegou a pensar em seguir carreira religiosa, acabaria abandonando ambas para, depois da viagem do HMS Beagle (1831-1836), se consagrar como naturalista. Durante a longa estada abordo do Beagle, que contemplou passagem por diversos locais, incluindo as ilhas Galápagos, cuja peculiaridade da fauna local inspirou a formatação da teoria da evolução por meio da seleção natural, Darwin, pelo contato que teve com uma grande variedade de crenças e práticas religiosas ao redor do mundo, pode ampliar sobremaneira a sua visão espiritual, deixando expresso, nas suas manifestações, que, em muitos aspectos, ele via o mundo natural como o mundo de Deus.
Quando da sua volta à Inglaterra, algumas dúvidas religiosas se exacerbaram em Charles Darwin, especialmente por que o seu avô, o pai e o irmão mais velho passaram a rejeitar o cristianismo, filiando-se à corrente de livre pensamento, que, em certos aspectos, levou-o a seguir naquela direção. Mesmo que a viagem e as influências familiares tivessem levado Darwin a repensar a sua religiosidade, ele nunca virou um ateu (pelo menos assumido). Quando escreveu "A origem das espécies" ela ainda era teísta, embora não necessariamente cristão. No final da vida, preferiu adotar o rótulo de agnóstico, expressão que havia sido cunhada pelo seu amigo Thomas Huxley, em 1869. Todavia, há que se destacar que, durante a maior parte da sua vida, Charles Darwin manteve suas dúvidas religiosas exclusivamente para si mesmo. As razões para isso são diversas. Desde levar uma vida sossegada, gozando de respeitabilidade social e, a mais importante de todas, segundo alguns, não decepcionar a sua esposa Emma, que era cristã fervorosa, tendo escrito em carta para Darwin que, após a morte, esperava se reencontrar com ele no paraíso.
Aceitar a evolução, para muitos, é o mesmo que negar o lugar privilegiado que se supõe ter sido reservado por Deus aos seres humanos no processo da criação. E isso envolve desde acreditar na imortalidade da alma até questionamentos de ordem moral. Aqueles que, no século 19, se opuseram e os que, ainda hoje, se opõem ao darwinismo e ao neodarwinismo (reunindo as ideias de Mendel e de Darwin, implicando na hereditariedade das características adquiridas), em geral, o fazem pelo conflito decorrente de uma interpretação literal das escrituras ditas sagradas ou em razão de crenças no livre arbítrio e na força da responsabilidade moral. Na teoria de Darwin, a ideia de um Deus criador não foi necessariamente banida, embora empurrada para uma posição marginal. Esse Deus, em existindo, poderia ter criado as espécies mais por seleção natural que por uma sucessão de milagres individuais.
Salvo entre os fundamentalistas, desde o século 19, tem sido desenvolvida, especialmente pela Igreja Católica Romana, uma gradual linha oficial de aceitação da espécie humana como tendo fisicamente evoluído do jeito que é descrito pela ciência, reservando à alma a criação divina, à imagem de Deus, não podendo esta ser explicada meramente como produto da evolução materialista. Em declaração de 2005, o papa Bento XVI foi taxativo que não somos um produto meramente casual e sem significado da evolução. Essas palavras não necessariamente contrariam a evolução sob o ponto de vista científico, mas negam a evolução como uma visão hierárquica que priva o mundo de significado e propósito.
A teoria de Darwin tem implicações teológicas. E talvez seja por isso que a imagem mais conhecida dele é a de um homem velho, com barba branca e uma expressão inequívoca de profeta bíblico, ou até mesmo de Deus.

Gilbeto Cunha.

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