quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Haverá amanhã?



As imagens são terríveis: tudo é destruição, sofrimento e morte no Haiti devastado. Tragédia que se mostra nas casas e ruas destruídas, mas que é mais impactante nos rostos e nos gestos dramáticos dos sobreviventes. No quadro dantesco, há gritos, choro, mãos estendidas. Máscaras cobrem o rosto dos que prestam socorro. “É o cheiro da morte”, diz a repórter, que passa entre cadáveres estendidos no chão, em direção a uma voz que pede socorro.

A terra tremeu na capital daquele que é o país mais pobre das Américas. Às carências que são ali rotineiras – miséria, violência, doenças, analfabetismo – soma-se a destruição do pouco que havia. O terremoto desalojou milhares e matou um número não quantificado de pessoas: talvez 100 mil vítimas, talvez mais, porque muitos estão desaparecidos e supõe-se que permaneçam sob os escombros.

Uma corrente internacional de solidariedade mobilizou-se e equipes de socorro – bombeiros, médicos, sanitaristas e voluntários – seguem para as áreas mais afetadas. Dinheiro e gêneros alimentícios foram doados por países de todos os matizes raciais, religiosos e ideológicos. É difícil, porém, chegar às vítimas, pois a infraestrutura, que já era deficiente, entrou em colapso total.

A morte, a sede e a fome não esperam: por si mesmas, exigem atendimento imediato. Os mortos logo se decompõem, não há como dizer-lhes que esperem até que sejam sepultados. Sedentos e famintos, mesmo os mais civilizados convertem-se em feras, na busca desvairada do necessário à sobrevivência. Quando sobrevêm os saques e brigas por água e comida, o ser humano volta à horda primitiva.

A televisão mostra as casas destruídas – são modestas habitações, algumas situadas em bairros próximos do Palácio do Governo, que foi parcialmente arrasado. Em verdade, a capital haitiana não passava de enorme favela com quase dois milhões de habitantes; destes, somente a metade dispunha de água tratada e rede de esgotos. Agora, nem isso; a ameaça de epidemia está no ar impregnado de mau cheiro e infestado de moscas.

Conhecer um pouco da história do Haiti ajuda a explicar tanto atraso e pobreza. Situado na ilha de São Domingos, a primeira a que aportou Colombo no Novo Mundo, o Haiti esteve inicialmente sob dominação espanhola. No final do século XVII, passou às mãos dos franceses e tornou-se a mais rica de suas colônias, produzindo açúcar de excelente qualidade, que desbancou o produto brasileiro no mercado internacional.

Na população haitiana predominavam os negros africanos e seus descendentes, reduzidos à escravidão nas bem organizadas fazendas que exploravam a fertilidade das terras. Toussaint Louverture – um autodidata, que lia os clássicos e conhecia os ideais da Revolução Francesa, cuja aplicação reivindicava – liderou uma revolta que resultou na extinção do regime servil e na formação do Estado haitiano, do qual viria a ser governador-geral. Ascendendo ao poder, Napoleão Bonaparte não confiava no ex-escravo, que foi deportado e preso, vindo a morrer no cárcere.

Quando os franceses tentaram restaurar a escravidão, o africano da Guiné, Jean-Jacques Dessalines, assumiu a liderança rebelde: com a ajuda da Inglaterra, expulsou os franceses e, em 1804, proclamou a independência do Haiti, o segundo país das Américas a libertar-se do status colonial e o único formado a partir de uma rebelião escrava.

Para garantir que o Haiti fosse essencialmente negro, Dessalines protagonizou implacável perseguição aos brancos, em geral, e aos fazendeiros, em particular, os quais foram quase todos mortos. Dizimadas também as plantações, desorganizou-se a economia da ilha, igualmente afetada pela destruição das matas e pela degradação do solo e das águas.

A partir de então, a história do Haiti é uma sequência de tentativas de organização de um estado democrático, sempre inviabilizado pelo baixo nível educacional da população e pela ação maléfica de uma elite dirigente corrupta e violenta: entre 1850 e 1900, o país teve 20 governantes; destes, 16 foram depostos ou assassinados. Ainda tenho presente na memória a lembrança da figura sinistra de François Duvalier – o “Papa” Doc, com seus “tonton-tons macoutes” (bichos papões), praticantes de vodu – que exterminou a oposição e tornou-se presidente vitalício até morrer, em 1971.

Nos últimos anos, a instabilidade política e social do Haiti configurou-se como ameaça para a paz internacional e a segurança da região. Uma Força Multinacional Interina (MIF), organizada pela ONU, foi deslocada para aquele país, sob a liderança do Brasil. A partir de 2004, passou a atuar a Missão das Nações Unidas para a Segurança do Haiti (MINUSTAH), composta de civis e militares, estes comandados pelo general brasileiro, Augusto Heleno Ribeiro Pereira.

Em diversos momentos, a mídia mostrou as dificuldades enfrentadas para melhorar as condições de vida e promover o desenvolvimento do pequeno e conturbado Haiti. Os resultados alcançados eram precários: mais de 70% dos haitianos ainda viviam com menos de dois dólares por dia, ou seja, míseros três reais e cinquenta centavos!

E agora, um terremoto devastador! Passado o impacto da tragédia, quando secarem as fontes de ajuda, o que será do Haiti? Aquele meninozinho de olhos assustados, retirado dos escombros da casa onde foram soterrados seus pais – haverá amanhã para ele?]

Lena Castello Branco.

3 comentários:

  1. Olá!

    É muito trite ver tantas destruições, tantas coisas ruins ocorrendo em todos ou lugares e com todos os tipos de pessoas. Infelizmente, a gananância, o ódio, a vingança estão presente na mente de muitas pessoas.

    Abraços

    Francisco Castro

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  2. Belo texto. Parabéns pelo post!
    Contar um pouco da história do Haiti também é importante para se dar uma visão melhor do que é (e foi) este país assolado pela tragédia.
    Forte abraço, Fernandez.

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  3. Será que o Haiti existe ou será que nunca existiu?

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