Mais do que salvar vidas, o
objetivo da medicina é aliviar o sofrimento humano
Homenagem aos que elegeram a medicina como a arte de aliviar o
sofrimento humano. Segundo Bezerra de Menezes, “o médico verdadeiro não tem o
direito de escolher a hora, de inquirir se é longe ou perto, de não atender por
ter trabalhado muito e achar-se fatigado, ou por ser alta a noite”.
O doutor Drauzio Varella, em seu livro “Por um Fio” (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), chocou-me, de início, com a afirmação de que criamos teorias fantásticas para nos convencer de que a vida é eterna. Depois entendi que tal afirmação era apenas uma premissa para investigar o sentido da perda de uma vida. A morte – diz ele – é a ausência definitiva.
Afirma Varella que nosso apego à vida é uma força selecionada impiedosamente pela natureza. Queiramos ou não, somos impelidos a lutar pela sobrevivência, é a lei da reprodução da espécie. Diríamos que só Brás Cubas, de Machado de Assis, o contestaria em suas Memórias póstumas: não quis ter filhos para não transmitir o legado da miséria humana.
Diz o doutor Varella que só começou a sentir-se médico depois de lidar diariamente com a morte, principalmente em crianças, o que para ele foi um golpe de misericórdia em sua onipotência juvenil. Suas reflexões norteiam-se pela crença num princípio: mais do que salvar vidas, o objetivo fundamental da medicina é aliviar o sofrimento humano.
Para nós leigos, cuidar diuturnamente de alguém gera a oportunidade de nos tornarmos mais humanos e reparar possíveis erros decorrentes de nossa ignorância. Nessas circunstâncias, tudo que um filho possa fazer por sua mãe é pouco, se comparado a tudo que essa mãe fez por seu filho, mormente quando era ainda um simples projeto de gente, impotente e inútil em cima de um berço. É o caso de quem escreve (e de quem lê) estas linhas.
As
terríveis dúvidas
Há casos temíveis e dúvidas terríveis. Quando casos e dúvidas se
resolvem com o médico, resta ainda uma esperança. Mas há situações-limite que o
doente ou seus familiares têm que enfrentar sem ajuda médica. Decidir o destino
de alguém entre a vida e morte, traz o pior dos sofrimentos. Uns médicos
diagnosticam, por exemplo, um caso de amputação, outros arguem que o paciente
já não resiste a uma anestesia.
Qualquer intervenção cirúrgica ou ato heróico, poderia resultar numa fatalidade.
Entre a incerteza do êxito de uma aventura médica e a esperança de se ter mais um dia de vida, quase sempre vence esta segunda alternativa. Os médicos com suas certezas acham-se no dever de arriscar sua competência para salvar vidas. Os leigos com a fé têm o direito de acreditar na vida como efeito de um milagre. O organismo humano não se limita a uma mera composição química. O sentimento de ameaça à sobrevivência tem mais força para atrair a solidariedade das pessoas do que para convencê-las do diagnóstico científico dos médicos.
Certa feita, hospedamos em casa uma senhora idosa, acima dos 80 anos, que devia submeter-se a uma arriscada cirurgia para remover varizes. Chamado a opinar com a família, sugeri que fossem consultados três especialistas, devendo prevalecer pelo menos a opinião comum de dois deles. Pude aquilatar a alegria resultante dessa iniciativa, aliada à coragem daquela senhora octogenária.
Admita-se outra situação que represente um caso de vida ou morte de alguém sob sua responsabilidade. Ora, se os próprios médicos reconhecem a impotência da medicina para salvar vidas, imagine-se a angústia de um leigo, que só poderá recorrer ao criador da própria vida, para preservá-la mais um dia que seja.
Confiar
desconfiando
Nem sempre há provas que permitam afirmar a causa mortis de
alguém, por exemplo, uma infecção hospitalar contraída em consequência de
negligência ou imperícia médica. O que acontece diariamente nos hospitais, nem
sempre chega ao conhecimento do paciente ou de seus familiares que investem
total confiança nos apóstolos de Hipócrates, sem prever que entre eles pode
haver um Judas.
Cumpre indagar também até que ponto as pessoas têm esclarecimentos suficientes para cuidar de seus próprios doentes em casa sem negligenciar a necessária assistência médica. Certo é que só há uma medicina eficiente: a preventiva. A medicina curativa é por vezes mais impotente que a doença. É óbvio confiar na medicina como ciência, mas não necessariamente nos médicos como cientistas. Diante de um mesmo caso cada um tem uma opinião diferente.
Muitos médicos veem o paciente como objeto (e não como sujeito) no campo de uma equação matemática. Poucos têm a visão holística capaz de associar a parte com o todo, como é o caso de uma vida humana. Raríssimos tratam o doente com a percepção de sua individualidade. A resposta de cada medicamento no organismo humano é diferenciada, assim como o é a reação da pele aos perfumes.
Ninguém pode ser mais responsável, nem responsabilizado pela assistência a um doente, do que um membro da própria família. Além do mais, dentro de uma escala de preferência, de pais para filhos ou vice-versa, de irmãos para irmãos, e assim por diante, conforme o grau de consanguinidade ou de afinidade que fale mais alto.
Não faço objeção, é claro, a um sistema de tratamento adequado que conte com a indispensável orientação médica e a colaboração de auxiliares necessários. Mas às vezes é preferível investir maior confiança em pessoas de trato doméstico do que na suposta eficiência de profissionais da saúde. Mesmo assim, a regra é confiar desconfiando.
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