Um dos mais surrados lugares comuns do debate
político é o de que a distinção entre esquerda e direita já não tem mais
cabimento no mundo contemporâneo. Será mesmo? Observando-se o atual cenário
político brasileiro é possível aferir tal questão, vislumbrando até que ponto
este lugar comum – como tantos outros – não passa de preconceito ou, quem sabe,
descreva bem a realidade.
Para que tal observação seja possível e faça
sentido, faz-se necessário, primeiro, fixar um critério do que se entende como
direita e esquerda. Afinal, no debate de senso comum sobre a política não há um
entendimento consensual sobre isto. Uma definição minimalista, mas que me
parece útil para dar conta de situações muito variadas, é de que enquanto a
esquerda propugna pela igualdade, a direita propugna pela desigualdade – e daí
é possível extrair uma série de derivações.
Voltando às origens da distinção, na Assembleia
Nacional Francesa durante o período revolucionário, os que se sentavam à
direita de seu presidente eram os apoiadores do antigo regime e das
desigualdades que lhe caracterizavam, alicerçadas nas distinções estamentais
que conferiam privilégios aos ocupantes dos estratos sociais superiores. À sua
esquerda sentavam-se os que defendiam o fim do antigo regime e, com ele, das
distinções estamentais que engendravam desigualdades.
Desse modo, não só foi estabelecida ali a
terminologia, como também a associação entre os dois termos e as preferências
em relação à dicotomia igualdade/desigualdade. A direita se compunha dos
conservadores, defensores da manutenção da velha ordem; a esquerda era
integrada pelos liberais, que advogavam pela mudança simbolizada pelo lema
“liberdade, igualdade, fraternidade”.
Com o advento da industrialização, do movimento
operário e do socialismo, o espaço da esquerda passou a ser ocupado por este
último, deslocando para a direita (talvez para o centro) o liberalismo. O
socialismo postou-se à esquerda do liberalismo por defender mais igualdade do
que ele, agregando à equivalência de honra social (possibilitada pela superação
da sociedade estamental) a demanda por igualdade econômica.
Ao longo do século XX, nos países em que se
estabeleceu a política competitiva inaugurada pelo liberalismo, agregando-se a
ela o sufrágio universal sem distinções censitárias (primeiramente de renda e
propriedade, depois de gênero), emergiram as democracias representativas.
Nelas, a disputa entre esquerda e direita tornou-se o principal balizador das
contendas políticas, tanto nos órgãos representativos, quanto nas eleições. E
como as organizações cruciais de tais disputas eram os partidos políticos, os
sistemas partidários passaram a se organizar ao longo da dimensão
esquerda-direita. Tal estruturação dos sistemas partidários facilitava muito a
vida dos eleitores, já que lhes fornecia atalhos cognitivos para que fizessem
escolhas baseadas em suas preferências de valores com respeito à questão da
maior ou menor igualdade e das políticas adequadas para lidar com ela.
Todavia, a política democrática pregou uma peça naqueles
que tomavam a dimensão esquerda-direita de forma estática e simplista. A
preocupação dos eleitores com soluções práticas para seus problemas cotidianos,
para além de considerações abstratas em relação aos valores últimos, fez com
que a maioria dos cidadãos não se posicionassem de forma categórica num dos
dois polos da dicotomia. Assim, embora muitos desejassem mais igualdade
econômica, não entendiam que a forma de alcançá-la fosse pela socialização dos
meios de produção; embora muitos se mantivessem apegados à hierarquia social
estabelecida, não acreditavam que essa devesse ser completamente imutável.
Noutros termos, a maior parte dos cidadãos não era puramente de direita, nem de
esquerda.
E como para vencer as eleições é preciso agradar ao
maior número de eleitores possível, os partidos com anseios mais amplos
passaram a moderar suas posições, de modo a arrebanhar um número cada vez maior
de votos junto àqueles que não compartilhavam inteiramente de suas posições à
esquerda ou à direita.
Tal movimento dos partidos mais dispostos a se
tornarem majoritários fez com que tanto a direita como a esquerda se
moderassem, assumindo mundo afora uma feição cada vez mais mediana – de
centro-direita, ou centro-esquerda. O caminho rumo à moderação não implica uma abdicação
completa do posicionamento à direita, ou à esquerda, mas uma relativização
dele. Nos sistemas bipartidários (como os EUA, ou a Inglaterra) é a própria
dinâmica eleitoral que leva os partidos a posições de maior moderação em
relação àquilo que é a sua forma de polarização, de modo que o comportamento
parlamentar e governativo irá apenas refletir um processo que já ganhou corpo
na disputa eleitoral.
Nos sistemas multipartidários (como o nosso) a
dinâmica eleitoral ainda possibilita um posicionamento ideológico mais claro,
ao menos nas eleições proporcionais – como aquelas para o Legislativo. Contudo,
tanto as eleições majoritárias (como as para a Presidência) quanto a formação
de coalizões (de governo ou eleitorais) levam os partidos a uma moderação de
suas posições originais. Afinal, é bem provável que eles tenham de se aliar a
agremiações de orientação ideológica diferente da sua e a convivência será
impossível se uns e outros não fizerem concessões aos parceiros – inclusive as
de caráter ideológico.
No Brasil, tal dinâmica é responsável por
assemelhar de maneira significativa os principais contendores partidários –
principalmente no âmbito nacional. Isso não significa que não haja diferenças
relevantes (de política econômica, política externa, políticas sociais, etc.),
mas tal relevância está longe de corresponder a uma polarização radical – razão
pela qual os principais contendores habitualmente têm rotativamente os mesmos
aliados em suas coalizões. No Brasil, a radicalização ideológica não está no sistema
partidário, mas na opinião pública – com os blogs sujos de um lado e os
liberais intolerantes do outro.
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