terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
A alegria é um produto de mercado - Arnaldo Jabor
“Sem melancolia não há arte nem filosofia”
Está chegando o Carnaval. Antigamente, o Carnaval vinha aos poucos, junto com as cigarras e o imenso verão, com as marchinhas de rádio que aprendíamos a cantar.
Hoje, o Carnaval se anuncia como um prenúncio de calamidade pública, uma "selva de epiléticos", com massas se esmagando para provar nossa felicidade. A alegria natural do brasileiro foi transformada em produto.
Hoje em dia é proibido sofrer. Temos de "funcionar", temos de rir, de gozar, de ser belos, magros, chiques, tesudos, em suma, temos de ter "qualidade total", como os produtos. Para isso, há o Prozac, o Viagra, os "uppers", os "downers", senão nos encostam como mercadorias depreciadas.
O bode pós-moderno vem da insatisfação de estar aquém da felicidade prometida pela propaganda. É impossível ser feliz como nos anúncios de margarina, é impossível ser sexy como nos comerciais de cerveja.
Ninguém quer ser "sujeito", com limites, angústias; homens e mulheres querem ser mercadorias sedutoras, como BMWs, Ninjas Kawasaki...
E aí, toma choque, toma pílula, toma tarja preta.
Só nos resta essa felicidade vagabunda fetichizada em êxtases volúveis, famas de 15 minutos, "fast fucks", "raves" sem rumo.
A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória. "A depressão não é comercial", lamentou um costureiro gay à beira do suicídio, mas que tinha de sorrir sempre para não perder a freguesia.
O mercado nos satisfaz com rapidez sinistra: a voracidade, o tesão, o amor. E pensamos: eu posso escolher o filme ou música que quiser, mas, nessa aparente liberdade, "quem" me pergunta o que eu quero? A interatividade é uma falsificação da liberdade, pois ignora meu direito de nada querer. Eu não quero nada. Não quero comprar nada, não quero saber nada, quero ficar deprimido em paz.
Acho que a depressão tem grande importância para a sabedoria; sem algum desencanto com a vida, sem um ceticismo crítico, ninguém chega a uma reflexão decente. O bobo alegre não filosofa, pois, mesmo para louvar a alegria, é preciso incluir o gosto da tragédia. No pós-guerra, tivemos o existencialismo, a literatura com gênios como Beckett e Camus ou o teatro do absurdo, o homem entre o sim e o não, entre a vida e o nada.
Estava neste ponto do artigo quando chegou-me às mãos um artigo chamado "Elogio da Melancolia", de Eric G. Wilson, da Universidade de Wake Forest. Veio a calhar. Com destreza acadêmica, ele aprofunda meus conceitos. Ele escreve: "Estamos aniquilando a melancolia. Inventaram a ciência da felicidade. Livros de autoajuda, pílulas da alegria, tudo cria um admirável mundo novo sem bodes, felicidade sem penas. Isso é perigoso, pois anula uma parte essencial da vida: a tristeza."
E continua: "Não sou contra a alegria em geral, claro... Nem romantizo a depressão clínica, que exige tratamento. Mas sinto que somos inebriados pela moda americana de felicidade. Podemos crer que estamos levando ótimas vidas livres, quando nos comportamos artificialmente como robôs, caindo no conto dos desgastados comportamentos felizes, nas convenções do contentamento. Enganados, perdemos o espantoso mistério do cosmo, sua treva luminosa, sua terrível beleza. O sonho americano de felicidade pode ser um pesadelo. O poeta John Keats morreu tuberculoso, em meio a brutais tragédias, mas nunca denunciou a vida. Transformou a desgraça em uma fonte vital de beleza. As coisas são belas porque morrem - ele clamava. A rosa de porcelana não é tão bela como aquela que desmaia e fenece."
Li também num texto de Adauto Novaes uma citação de Paul Valery: "O que seria de nós sem o socorro do que não existe? Se uma sociedade elimina tudo que é vago ou irracional para entregar-se ao mensurável e ao verificável, ela poderia sobreviver? (...) tudo o que sabemos e tudo que podemos hoje acabou por opor-se ao que somos. A ordem exige a ação de presença de coisas ausentes."
Ou seja - digo eu -, o que seria de nós sem as coisas vagas com que podemos sonhar?
A resposta a isso eu encontrei num texto de Vargas Llosa publicado no "El País": "Palavras como espírito, ideais, prazer, amor, solidariedade, arte, criação, alma, transcendência significam ainda alguma coisa? (...) Antes, a razão de ser da cultura era dar resposta a esse tipo de perguntas, porém o que hoje entendemos por cultura está esvaziada por completo de semelhante responsabilidade. Hoje, o que chamamos de cultura é um mecanismo que nos permite ignorar assuntos problemáticos; é uma forma de diversão ligeira para o grande público esquecer-se do que é sério, como uma fileira de cocaína ou férias de irrealidade."
Aliás, esse é o grande sonho do mercado: a satisfação completa do freguês.
No entanto, a melancolia, a consciência do tempo finito, é o lugar de onde se contempla a beleza.
Há uma conexão entre tristeza, beleza e morte. Só o melancólico cria a arte e pode celebrar a experiência do transitório resplendor da vida. A melancolia, longe de ser uma doença, é quase um convite milagroso para transcender a banalidade cotidiana e imaginar inéditas possibilidades de existência. Sem a melancolia, a terra congelaria num estado fixo. Mas permitimos que a melancolia floresça no coração, o universo, antes inanimado, ganha vida, subitamente. Regras finitas dissolvem-se diante de infinitas possibilidades.
Mas, por que não aceitamos isso? Por que continuamos a desejar o inferno da satisfação total, a felicidade plena?
Por medo. Escondemo-nos atrás de sorrisos tensos porque temos medo de encarar a complexidade do mundo, seu mistério impreciso, suas terríveis belezas. Usamos uma máscara falsa, um disfarce para nos proteger desse abismo da existência. Mas esse abismo é nossa salvação.
A aceitação do incompleto é um chamado à vida. A fragmentação é liberdade.
É isso aí, bichos - como se dizia em tempos analógicos.
Por Arnaldo Jabor.
Postado por
William Junior
às
09:34
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