No processo dialético de
construção da nação brasileira foram identificados diversos brasis que se
defrontavam, afrontavam e finalmente se somavam na busca de unidade através da
multiplicidade. Pois bem, é mercê a essa vocação de integridade na multiplicidade
que hoje se pode falar em povo brasileiro, em nação brasileira, em Estado
brasileiro, apesar de governos caóticos e caolhos liderados muitas vezes por
políticos malparidos e incompetentes, nem sempre voltados para os superiores
interesses nacionais.
Mas o que é ser brasileiro? Há
algo de universal entre nós, brasileiros? Quem sabe, um modo de ser, de sentir
e de agir? Um jeito peculiar de apreender o mundo das coisas? De opor-se em
face dele? Uma quimera compartilhada? Enfim, os brasileiros são tão díspares
entre si? É possível notificar certa analogia verdadeiramente substancial entre
um industrial abastado e um mendicante? Ou entre um banqueiro e um ativista da
CUT ou MST? Será que o ato de se expressarem no mesmo idioma e vibrarem com a
camiseta canarinho é idôneo para que se possam conglobar como brasileiros, numa
mesma eleição genérica, o ministro corrupto, o professor idealista, a dama do
hight-society, o pele-vermelha, o garoto favelado, o tropeiro, o pai-de-santo,
o juiz venal, o pastor, o trabalhador sem emprego, a faxineira, o estudante
desventurado, o artesão criativo, o traficante de drogas e o político
prevaricador? Caluda! Afinal, o que é ser brasileiro. Por certo, a ele são
creditados certos descaminhos ideológicos na verônica do país: os emblemas da
unidade pátria, comprometidos com o sentimentalismo cívico, mascaram antinomias
fundamentais e dissimulam desigualdades sociais indecorosas. Todavia, nem tudo
o que os brasileiros percebem do Brasil é produto de descaminhos ideológicos.
Por óbvio, na multiplicidade de
culturas formadoras da cultura brasileira surgem oportunidades, nas quais se
podem divisar certa probabilidade da criação de caracteres privativos de uma
identidade única, mas capaz de universalização. Apta a se fazer entender por culturas
outras, oportunizando-lhes uma experiência que poderá engrandecer - dans tout
le monde - o melhor entendimento do frágil papel humano. Mas para que se tente
usufruir essa probabilidade, urge fugir ao caminho desastrado trilhado por
determinados brasileiros que teimam em vender um indulgente retrato do Brasil
no exterior, com intentos de mera propaganda. O mais fiel retrato que a cultura
brasileira pode propiciar de nós mesmos, brasileiros, e que é digna de ser
desvelada lá fora, é a do complexo de nossas contradições mais intrigantes.
O povo brasileiro é criativo,
porém politicamente irresponsável e até licencioso. Nós, brasileiros,
construímos, sim, um Estado que por dezenas de décadas recebeu da metrópole
lusitana ordenações que eram acolhidas e amiudadamente não executadas: um
Estado que oprimia com alarvaria, mas podia ser ludibriado pelos espertalhões.
Mais: um Estado cruel, por incapaz, zarolho, aparelho de despotismo e
exploração, mas igualmente paiol de embustes, terreno de malandrices. Nós, brasileiros,
desenvolvemos o dom da improvisação e o talento egocentrista para o jeitinho e
as "virações". Falta-nos a disciplina indispensável aos feitos
coletivos. Mais: iniciativas transformadoras mais enérgicas. E isso deságua
numa cumplicidade com o conservadorismo malsadio. Pior: a subserviência.
Na América, o Brasil foi um dos
derradeiros países a abolir a escravidão negreira. E tal languidez avigorou a
depreciação do trabalho - proverbialmente subremunerado e reputado coisa de
pacóvios. Pior: a vocação aos golpes e ao jogo: o carteado, os dados, as
raspadinhas, a Loto, o bicho, as patas de cavalos et caterva.
Semelhantes particularidades
inquietam a consciência cívica individual, como se o Brasil "tão
majestoso, tão sem limites e tão despropositado", como o quer a poesia de
Drummond, não acreditasse no pendor de seus filhos em notificá-lo como o seu
país. Mas todos nós, brasileiros, o notificamos!
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