No campo da política, a chamada 'grande mídia' nos
invade diariamente com denúncias e mais denúncias
A visão que temos das coisas muitas
vezes é prejudicada pela racionalidade objetificante que permeia a nossa
cultura. Os fatos e eventos são identificados e compreendidos de forma imediata
e objetiva. Também desaprendemos a pensar e refletir, a não ser naquelas coisas
que nos tragam um retorno (de preferência econômico) de forma imediata (descartamos
tudo, inclusive qualquer pensamento que não nos seja imediatamente útil e
aproveitável). Assim, vendo o mundo no que ele nos é imediatamente útil,
consumimos tudo (inclusive os fatos; mais as versões sobre os mesmos) sem
maiores reflexões.
Porém, avançando um pouco além dessa
ótica velada, percebemos que, no campo da nossa frágil democracia e do chamado
Estado de Direito, as coisas não estão bem.
No campo da política, a chamada 'grande
mídia' nos invade diariamente com denúncias e mais denúncias (algumas inclusive
infundadas) da nefasta prática da corrupção que assola o Estado brasileiro
(parece ser a novidade do século). Tal prática tem, entre outros, um objetivo
muito claro: fazer com que haja um crescente sentimento de repulsa a tudo que
diga respeito à política e ao Estado (como se esses não fossem um reflexo da
própria sociedade). A construção dessa repulsa popular pretende, ao fim e ao
cabo, fortalecer sempre mais a ideia de uma ideologia do liberalismo econômico
(também com um discurso do “fim das ideologias”, pretendendo torná-la única) de
enfraquecimento constante do Estado em prol do mercado.
Portanto, os constantes ataques ao
Estado e à política não são de graça e desmotivados. Não que as mazelas não
existem e não devem ser combatidas, porém, precisamos cuidar para "não
jogar fora o bebê junto com a água da bacia", construindo uma espécie de
criminalização da política e do próprio Estado. A única solução para uma
política que vai mal é maior participação da sociedade, de um jeito ou de outro,
na própria política.
A situação não é muito melhor no campo
do judiciário (por outras razões, é claro). Vivemos um exacerbado
fortalecimento (fomentado e aplaudido pela “grande mídia”) do Poder Judiciário
(e também do Ministério Público – órgão independente, porém umbilicalmente
ligado ao Poder Judiciário), em detrimento dos outros dois Poderes da
República. Conforme o Ministro presidente do STF, Joaquim Barbosa, vivemos uma
"situação nova" e “o momento é outro". Certo; mas lembramos que a
nossa Constituição ainda é a mesma (e os conceitos e sentidos de seus
enunciados também).
A Constituição simboliza uma conquista;
uma afirmação do desejo de construção de uma sociedade justa e democrática,
sendo fundamental para a afirmação de um Estado de Direito. As principais
constituições modernas, principalmente aquelas forjadas no pós-guerra têm na
base de sua legitimação a efetiva participação popular (uma constituição
ditatorial também pode ser definida, dentro de certas linhas de pensamento,
como constituição, mas certamente lhe falta a legitimidade que somente a sua
construção democrática pode lhe dar), ou seja, são constituições cidadãs, que
norteiam uma sociedade democrática e um Estado de Direito.
Assim, a democracia empresta
legitimidade à Constituição, bem como a todo Direito (fundado nela). Também
legitima o Estado e seus Poderes. Portanto, um Estado de Não Direito é
ilegítimo, pois não estaria subordinado nem mesmo às leis que o próprio Estado
edita. E assim, consequentemente, os Poderes do Estado.
O respeito às leis por parte do Estado e
de seus Poderes constitui-se na garantia dos limites do poder desse mesmo
Estado e na direção da conduta (ou expectativa dela) por parte dos cidadãos. É
por isso que o Direito (constitucional) contemporâneo precisa ter coerência e
integridade. Não pode haver decisões que não guardam coerência com a construção
jurisprudencial e doutrinária; também não pode haver falta de integridade com o
sistema legal que fundamenta qualquer decisão.
A Constituição é norma superior, ela
vale e precisa ser respeitada. E não se pode dizer que a Constituição diz o que
ela não diz, ou pretender “interpretá-la”, conforme a consciência (vontade) do
julgador. Esse tipo de interpretação e aplicação do direito (que atualmente se
vê até em nossa mais alta Corte) é ativismo judicial (voluntário e arbitrário)
e não prestação jurisdicional, conforme a Constituição e o Direito posto.
É por isso que talvez chegue a hora de
um olhar mais profundo e preocupado com o que está acontecendo. É preciso ver
para além da simples aparência, com a pretensão de desvelar o que nos é
veladamente apresentado, para se verificar se está tudo bem com o nosso chamado
Estado de Direito; se efetivamente os Poderes republicanamente constituídos
estão respeitando o Direito constitucional legítimo e soberano construído as
duras penas, num processo democrático que ainda é bastante incipiente e como
tal precisa de muito cuidado para que velados ataques (com boas aparências ou
pretensões) não produzam um processo de corrosão que, quando tornar-se
aparente, pode ser irreversível.
Por: Edson Luís Kossmann.
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