domingo, 4 de abril de 2010

Um certo cansaço



Sei que talvez me repita um pouco hoje, mas, no momento, é difícil desviar a atenção para outro assunto. Refiro-me a Hugo Chávez, a quem assisto num clipe que me mandaram por e-mail, declamando seu bestialógico padrão e terminando em “¡muerte!” outra vez, com a habitual vaniloquência fanfarrona que, apesar de “de esquerda”, parece mais com o figurino de Mussolini. Não tenho nada com isso, havendo por graça divina nascido do lado de cá do Oiapoque, mas, como já observei antes, fico passado de vergonha com essas coisas. Chega desse negócio de “muerte”, que parece coisa de dramalhão mexicano da década de 50 do século passado, não sei como se consegue aturar essa palhaçada, ainda mais estrelada por um caudilho de meia-tigela. Até aqui mesmo, em meio a nosso atraso, já deram o último grito desses há bastante tempo e, segundo muito se comenta, não resultou nem em independência nem em morte.
Além disso, é difícil aguentar a mesma cantilena antiamericana com os quais os mais velhos já torravam o saco das novas gerações há décadas, a ponto de se atribuir aos gringos até surtos de catapora. Primeiro, tem a conversa de que, com cinquenta caças russos e mais uns tantos foguetes de São João, ele está preparado para enfrentar o poderio bélico americano, confronto que, como sabe todo mundo, só poderá ser deflagrado depois que for explicado aos americanos o que é um chávez e de que se trata a Venezuela. Em seguida, vem a convicção de que os mencionados americanos perdem horas de sono com o que uma aguerrida Venezuela pode fazer a eles. Não deixa de ser interessante, porque é do conhecimento geral que o sulfuroso petróleo venezuelano tem mercado restrito e os Estados Unidos são de muito longe seu freguês mais importante. Ou seja, bastava, para acabar logo com a farofada, que os americanos não comprassem mais o petróleo venezuelano. Mas imagino que isso ia gerar protestos, inclusive do Brasil, por resultar em odiosa pressão econômica, interferência nos negócios internos de um país soberano e semelhantes papos, além da ajuda humanitária que acabaria tendo de ser mandada para lá e demais chateações.
Agora, outra vergonha e outra manifestação de atraso, entre as que quase todo dia chegam da Venezuela: mais sufocamento da liberdade de expressão. Desta feita um político anti-Chavez foi preso por dar uma entrevista considerada ilegal, ou seja, que continha algo do desagrado do governo, que, lá como aqui, se confunde propositadamente com o Estado. E, com certeza, a autoridade que fez a prisão garantiu e garante que ela não tem nada a ver com o fato de que o preso concorreu à presidência da Venezuela na oposição e talvez ainda venha a concorrer, se Chavez daqui para lá não se promover a marechalíssimo e protetor perpétuo do povo.
Pelo menos dois dos delitos definidos pela lei chavista são exemplares. O primeiro é o “incitamento ao ódio”. Isto, é claro, significa qualquer coisa que se queira. Por exemplo, o governador Cabral podia ser enquadrado nessa lei, ao chorar por causa da emenda de Ibsen Pinheiro. Quantas velhinhas fluminenses não passaram a odiar o deputado Ibsen, por ter feito o paladino delas chorar tão sentidamente? E o segundo delito é a “difusão de informação falsa”, o que, novamente, tem amplitude suficiente para abranger qualquer coisa, bastando para isso que o governo diga que essa coisa é falsa. Por exemplo, imagino que, se algum técnico venezuelano opinar que os apagões de lá são consequência de incompetência do governo, o governo aparece, brande as estatísticas que estão sempre à disposição de qualquer governo e prende o técnico, não por delito de opinião, decerto, mas por divulgar informação falsa – a cadeia é a mesma, mas ninguém pode alegar que motivo da prisão também é.
Como, no Brasil de hoje, o governo e seus prepostos na máquina pública (que devia ser do Estado, mas é do governo) parecem estar empenhados em regulamentar todos os aspectos de nossa vida, venho até estranhando que não tenham ressuscitado a regulamentação da profissão de escritor, um projeto que já ocupou o Congresso e que também era “de esquerda”. Regulamentada essa profissão, que, na definição concebida pelos seus defensores, incluiria até mesmo os redatores de bulas de remédio e, com um pouquinho mais de esforço, os autores das comunicações internas dos condomínios residenciais, a primeira providência seria, naturalmente, sindicalizar os escritores. Depois viria a obrigatoriedade, para quem quisesse escrever, de filiar-se ao sindicato, pagar o imposto sindical e as mensalidades e seguir as orientações da categoria. Entre estas, com certeza, terminariam por constar diretrizes baixadas em assembleias gerais com a participação de cinco escritores profissionais, dez mil escritores eventuais e quatrocentos mil inéditos. Como, no sofisticado Brasil de hoje, se acredita que democracia quer dizer tirania da maioria, o escritor que se recusasse a aderir às posições do sindicato poderia ser expulso dele, passando assim a não ter mais direito de exercer a profissão. Quanto às editoras, é bem possível que o projeto venha a ser reformulado para obrigar qualquer editora que atue no Brasil a obedecer a uma pauta de publicação. Poderá ser criada uma lista de temas obrigatórios definidos pelo Conselho Nacional de Literatura e, com certeza, será aprovado um dispositivo que imporá às editoras dedicar um significativo percentual de sua produção a títulos de autores inéditos, outro a autores de cada Estado mediante indicação dos conselhos estaduais, outro a mulheres, outro a idosos e, finalmente, conquista das conquistas, a quotas para escritores negros. É, isso tudo realmente dá um certo cansaço. Mas não se pode descansar, porque o preço do descanso é a vitória do atraso e da burrice.


João Ubaldo Ribeiro.

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