Eu
sempre gosto de observar o rosto dos motoristas parados na frente da faixa de
segurança para o pedestre cruzar de uma calçada a outra. Ali, na face de homens
e mulheres atrás do volante, encontro o lado mais primitivo do homo motorizadus, a espécie que faz do
trânsito a arena de gladiadores do mundo moderno.
No
olho no olho da faixa de segurança eu costumo encontrar, por exemplo, o homo assassinus, que freia para os outros
caminharem no asfalto apenas por obrigação à lei. Ele odeia seres movidos pelas
pernas e seu desejo mais profundo é acelerar e passar por cima de quem o
desafia com um par de sapatos. Seu semblante fechado revela essa vontade
doentia de colocar a cabeça para fora e gritar:
- Sai da minha frente, criatura fraca.
Mas ele se segura e resmunga sozinho. Precisa se concentrar e demonstrar algo que nunca teve: racionalidade.
Há
também o homo apressadus. Ele esmaga o pedal do freio
e canta pneus ao se aproximar a toda velocidade da faixa, onde há veículos
parados. Fica agitado porque não consegue seguir em frente. Olha para os dois
lados, mexe no relógio, no aparelho celular, aumenta o volume do rádio, xinga
mentalmente.
Quer acelerar e não pode por causa de uma força invisível imposta
pelo viver em coletividade. Mesmo assim, avança à medida em que as pessoas
cruzam na frente do seu carro. Fica com meio capô sobre a pintura no chão e
obriga os pedestres a contornarem a dianteira do automóvel, que o olham de
forma reprobatória.
E
existem dois personagens muito estranhos: o casal
motorizadus. Trata-se de uma fêmea no
banco do carona e de um macho motorista. Ele carrega traços do homo assassinus, mas ela já é um estágio
acima da evolução. Quando percebe o desejo do parceiro de desrespeitar, inicia
um discurso.
Aponta para os pedestres, fala da parte mais frágil do trânsito,
do quanto todos precisam aprender a seguir as regras. Enquanto isso, o homo assassinus aperta
o volante com as mãos, range os dentes, faz cara de furioso por causa daquele
discurso chato e verdadeiro. Também almeja acelerar contra a multidão, mandar a
companheira calar a boca e dizer que trânsito não é coisa para mulher.
A
faixa de segurança é o nosso elo perdido. Nela encontramos ao mesmo tempo seres
da idade das cavernas, descobridores do fogo, caçadores e alguns sapiens. Todos
tendo que conviver por poucos segundos, na travessia de uma calçada a outra, e
exercitar seus instintos sombrios.
- Quero te atropelar, seu idiota.
- Anda mais rápido, imbecil.
- Malditos pedestres.
- Tem que parar, tem que parar. Olha a faixa.
- Tá com pressa? Passa por cima.
- Quero te atropelar, seu idiota.
- Anda mais rápido, imbecil.
- Malditos pedestres.
- Tem que parar, tem que parar. Olha a faixa.
- Tá com pressa? Passa por cima.
Na
faixa de segurança mostramos quem, de verdade, somos. Deveríamos escolher as
pessoas para viver ao nosso lado, para o resto da vida, na frente dessas
linhas. A chance de erro seria zero.
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