O Estado burocrático se
provou mais eficaz que uma arma de fogo
A fila
estava interminável como sempre, duas ou três vezes senti-me tentado a ir para
outras, à esquerda ou à direita, mas devido à experiência ou preguiça, desisti,
afinal elas nunca são mais rápidas mesmo, melhor ficar com minha opção e assim
fiquei.
Um
documento nas mãos para simples autenticação estava me tomando boa parte da
tarde de trabalho, o governo exige e o cidadão cumpre, é nossa sina – se o
Estado inventasse menos coisas seria ótimo, mas desse modo não seria necessário,
ele precisa criar dificuldades sempre, talvez como justificativa para os
impostos tomados.
Com esses
pensamentos me distraía e a longa fieira de pessoas foi diminuindo, de algum
lugar distante eu ouvia a voz indolente do servidor enunciando: próximo,
próximo, próximo …agora eu era o próximo, a pessoa a minha frente vestia
bermudas e chinelos, parecia feliz, sou o último da fila e não tem como dizer
que seria o primeiro, talvez o único nesse momento, ouvi os chinelos passando
por mim e esperei o chamado ansiosamente – próximo- os papéis já estavam todos
ordenados, eu aguardava.
Após
certos instantes, notei que não havia ordem alguma para que me aproximasse,
resolvi prestar atenção no atendente que me ignorava – será que não me viu? –
Por educação eu não avancei a linha que me mandava aguardar, esperei até onde
pude, ele olhou para mim diretamente umas três vezes, não estava fazendo
absolutamente nada, simplesmente parado ali no seu posto, meio preocupado fui
falar com o representante do poder estatal.
– Boa
tarde, disse eu, meio tímido.
– Boa
tarde, senhor, posso ajudá-lo?
Nesse
minuto confesso uma certa confusão, eu aguardei e ele não me chamou e agora se
dispõe a me ajudar, não entendi, mas lhe mostrei os papéis e disse, bastante
humilde, o que desejava – Com a rapidez típica do ofício, sobreolhou minhas
folhas, confirmou que eu estava no lugar correto (como se eu não soubesse) e,
tranquilamente, depois de lançar uma olhadela às minhas costas, disse que não
poderia me atender.
Pasmo,
assim como alguém que não é correspondido em seu amor, quase lacrimejante,
somente consegui balbuciar: – Mas por quê?
De forma
calma, e no que aparentemente era a explicação mais sensata do mundo, o nobre
servidor me informou que, de acordo com as regras do regimento nº tal,
publicado no Diário Oficial do dia “tatatá”, os atendimentos a pessoas (animais
não, frise-se) somente poderia ser realizado àquelas que estivessem em fila,
imediatamente apontando com o dedo em riste para uma plaquinha à minha
esquerda: “Atendimentos somente na fila.”
– Eu
estava numa fila, respondi, entre surpreso e entediado, imaginando que espécie
de filme nonsense seria aquele.
–
Exatamente, respondeu o funcionário. – O senhor estava em uma fila, não está
mais, pois é evidente que não existem filas de uma pessoa só, portanto,
enquanto não surgir outra pessoa e constituir uma linha, não posso atendê-lo, é
muito simples isso.
Perguntei
logo pelo gerente do setor – gerente, diretor, supervisor ou seja lá que nome
deem para tais cargos, alguém com poder de decisão diante de um absurdo desses.
O
superior hierárquico, após alguns instantes, dignou-se a falar comigo sobre o
embate, expliquei-lhe o ocorrido, sendo que durante a narrativa repeti várias
vezes que o servidor primeiro não havia sido mal educado ou grosseiro ou rude
comigo, só não acolhia meus documentos pelo motivo mais estúpido que se poderia
ter – Ao que parece, desde que você seja educado, pode solicitar o que quiser.
Novamente,
o gerente explicitou a lógica da fila e igualmente concluiu, com olhares
cúmplices entre os servidores, que não havendo fila não haverá maneira de
prosseguir ao intentado.
Já,
então, sem esperança, assenti essa derrota vergonhosa, pensando em partir,
quando foi sugerido que eu poderia, a troco de dez “pitanguinhas”, conseguir
alguém que me fizesse estar em uma fila.
–
Pitanguinhas? – Sim, me respondeu – Preferimos esse nome porque “pixuleco” traz
conotações muito negativas e na verdade, é um favor feito ao contribuinte no
seu caso, nada ilegal.
Injuriado,
gritei que iria aos órgãos de defesa do consumidor, à justiça, à imprensa, onde
quer que fosse, mas não pagaria um centavo de pitanga a ninguém.
Continuaram
muito educados e gentis, disseram entender meu ponto de vista e garantiram que
meus direitos eram assegurados pela Constituição, até me desejaram boa sorte na
lida, cada um foi para o seu lado e quedei-me ali parado, oficialmente na
qualidade de sem-fila.
As outras
pessoas daquele posto público não arredaram pé dos seus lugares, nitidamente me
abandonaram, quase me culpavam, notei que muitos estavam acompanhados em dupla,
estavam precavidos – mais meia hora de espera e ninguém aparecia em meu
socorro, o horário de expediente estava findando.
Cansado,
humilhado, exasperado, dirigi-me ao carrasco, dei-lhe as frutinhas exigidas e
por encanto, apareceu alguém atrás de mim, fez-se a fila, fui atendido
rapidamente, coisa de um carimbo aqui e um zip zap ali, outro boa tarde e
parti.
O Estado
burocrático se provou mais eficaz que uma arma de fogo, aniquilou-me
silenciosamente, não há como lutar contra leis aprovadas, por mais absurdas que
sejam, eles sabem disso, como também sabem que estamos tão divididos quanto os
gomos de uma tangerina, apesar da pretensa união.
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