terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Depoimento: Eu, pecadora por convicção


É preciso olhar para si mesmo, e não julgar o próximo

 Não foi a política, foi uma palavra que me separou do grupo religioso familiar e caminha a passos largos para me separar da humanidade inteira. Eu, que sempre defendi os méritos das religiões, sou obrigada a reconhecer que um erro de tradução do cristianismo condenou uma civilização inteira, talvez até a espécie humana.
Sim, o “Não julgueis” é o verdadeiro culpado pelo estacionamento da raça humana na trajetória infinita da evolução espiritual e da nossa espécie. Graças a isso é que somos tão parecidos aos animais irracionais. Obviamente a culpa é dos tradutores que fizeram algo parecido com substituir na obra de Sheakspeare o ‘ser’ pelo ‘ter’: “Ter ou não ter, eis a questão.” Obviamente teríamos acreditado que foi assim que Hamlet falou desde a estreia, já que refletir sobre coisas consolidadas ou incoerências é sempre visto como um ato subversivo.
Pois com o “não julgueis” aconteceu o caso hipotético de Hamlet, a frase nega e invalida todo o Cristianismo. A contradição é tão óbvia que o próprio Jesus nos ensinou a julgar: “Uma árvore boa não produz maus frutos e uma árvore má não produz bons frutos.” E teve ainda o cuidado de nos apontar meios e referências para julgar de forma mais justa que é colocando-nos no lugar do outro para facilitar o entendimento das motivações e antídotos para os erros e aderir aos acertos.
A lei do perdão, máxima do Cristianismo, fica toda revogada sem que se julgue se o ato é ofensa, quem errou contra quem?… Sem julgar, o que há para perdoar? “Vá e não torne a pecar’ ou ‘atire a primeira pedra quem não tiver pecado” – não negou o pecado. “Bem aventurados os que têm sede de justiça.” Como vou ter sede de justiça se não posso julgar o que é justo e injusto?
Toda a reflexão e a busca do conhecimento foram condenadas quando se proibiu o julgamento, até porque relegou à humanidade um estado de pecado eterno, pois ao proibir algo inerente ao raciocínio como a água é indissociável da vida, forçou a todos a negarem a prática mais cotidiana a fazê-lo às escondidas, em segredo.
A vida em coletividade se torna impossível se abrimos mão de julgar: “Andou jogando uma bomba em Hiroshima? Quem sou eu para julgar?” “Bateu na mulher? Quem somos nós para julgar?” Um atraso e tanto para a evolução das leis isso de “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Quem julgará então? Na fala do religioso, só Deus; na prática, todo mundo; nas leis humanas julgavam os reis e hoje julgam os tribunais.
E então nos tornamos submissos, verdadeiros zumbis comandados por critérios alheios e apedrejamos as mulheres passando por cima do próprio Cristo, mesmo tendo ele incitado o povo a ignorar o tribunal que regulava a lei do apedrejamento e fazer julgamento próprio.
A única conclusão racional disso é que o erro da tradução colocou a palavra “julgar” onde deveria constar “condenar”. Julgar demanda investigação, análise aprofundada de provas, tomada de depoimentos, direito de defesa da vítima. É a razão de ser da filosofia e da busca do conhecimento em todas as áreas das ciências humanas.
Já condenar é decretar e executar a sentença, castigar, punir. Para viver em comunidade é notório que as sentenças e condenações serão mais justas quando atribuídas a colegiados neutros, mas o julgamento cabe a cada um até para termos o discernimento das condenações injustas, como o apedrejamento sustado num exemplo claro de que a reflexão e o juízo próprio é peça integrante para contestar as crueldades e pertinência das leis.
A questão brotou no meu grupo de estudo religioso uns seis anos atrás, quando a proibição de julgar (como ocorre na sociedade) era inquestionável. Encerrado o decreto com vitória arrasadora de que julgar é um pecado, passávamos todos para a sala do lanche onde sem nenhuma metodologia ou critério nos dedicávamos a condenar o comportamento alheio pulando o processo do julgamento, aquele pecaminoso que interroga, analisa, concede direito de defesa e ouve o lado da defesa e da acusação.
De acordo com os princípios bíblicos estava certo. Nunca ninguém disse “Não condeneis”, estamos todos santificados. Não xeretamos a vida dos outros, não gastamos tempo, não nos debruçamos em análises das lacunas. Apenas definimos o que é a “opinião” de cada um e pronto. Lembro que passei a ser a chata do grupo, insistindo na discussão de um ponto tão óbvio contra todos, sem exceção, unanimidade absoluta. Até que, enfim, renunciei à questão.
Mas eis que toda omissão produz efeito tal e qual toda e qualquer ação. E então a política saiu de seu esconderijo e guetos secretos invadindo ruas e lares. Foi quando os efeitos letais do “Não julgueis” se materializaram com seu avassalador poder de destruição de relações, amizades, famílias e até de nações.
Quem dera tivéssemos aprendido antes a julgar, a nos reunirmos para analisar provas e indícios, ouvir o lado da acusação e da defesa, esgotar a possibilidade de buscas de elementos… O que poderia ser análise filosófica e material conjunta com poder de nos unir, saltou essa etapa e nos dividiu.
Sem julgamento, “Dilma vagabunda – Quadrilheiros – Corja de ladrões – Acabou com o Brasil – Copiou de FHC – Lulinha milionário – cortou o dedo para se aposentar” e tantos outros julgamentos realizados e consolidados sabe Deus onde ganharam espaço no círculo religioso, no familiar, na mesa do jantar, nos almoços de domingo. A imprensa adquiriu status de tribunal.
Nem todos concordavam com as condenações decretadas, mas como não nos cabe julgar e analisar elementos, ficou assim: cada um tem o direito às próprias opiniões e não se discute, mesmo sendo dialética a base da política e sendo a política o instrumento da implantação da justiça social.
Ao negar o pensamento crítico como prática constante e inerente à natureza humana, tratando-o como pecado, essa tradição condenou o pensamento, o raciocínio, acovardou e limitou nossa espécie. Silêncio e omissão passou a ser coisa de alma elevada porque passa a ideia de não julgamento, quando na verdade os mais calados são os árbitros mais duros, pois recusam ao julgado o direito de defesa ou contestação de suas conclusões, muitas vezes errôneas, parciais e cruéis. Julgamos e somos julgados o tempo todo. Somos e temos nos outros verdadeiros espelhos, aprendemos e somos exemplo de boas ou más ações. Senso de justiça para julgar e humildade ao sermos julgados produziria séculos de avanço intelectual e moral em anos.
Em sinal de protesto contra o apedrejamento sem julgamento me afastei do grupo de debate religioso até que aceitem guardar as pedras e revogar a lei do não julgueis. Não vão guardar as pedras nem revogar a prática. Então não vou voltar.
Desde criança vivo em pecado e decidi continuar assim. Sempre reparei e julguei o efeito dos atos alheios, as posturas dos colegas e dos meus superiores no trabalho, como cada um se vestia, falava e se comportava e o que resultava disso nas promoções e demissões. Meti minha colher em briga de marido e mulher, chamei polícia, entrei em briga de pivete de rua, ouvi em pesquisa dezenas de mulheres vítimas de violência doméstica, alcoólatras, usuários de drogas, políticos, estudei leis, métodos, fucei o mundo julgando (investigando – analisando) pra ver o que produzia melhores e piores resultados.
Julgo tudo o que vejo e leio, mas não atiro pedras, assumo defesa de lados. Condenar ou executar penas não cabe a mim, como entendi no discurso de Cristo. E aí os que não julgam estranham quando digo que não ligo pra se Cunha vai preso ou não, só quero um novo Congresso para que o Brasil possa seguir em paz.
Eu, pecadora convicta, escolhi a coerência ao rigor duvidoso da tradução e não renuncio ao direito nem ao dever de julgar. Sobretudo antes de condenar apontando quem são os bandidos e mocinhos de cada história.”
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