Uso da fosfoetanolamina
em tratamento contra o câncer divide opiniões.
Decisão do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo (TJSP) trouxe à tona uma discussão envolvendo médicos,
advogados e pacientes sobre o uso da fosfoetanolamina sintética para o
tratamento do câncer.
O presidente do TJSP, desembargador
José Renato Nalini, liberou, no último dia 9, a entrega da substância produzida
no Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da Universidade de São Paulo
(USP), para os pacientes que solicitaram judicialmente acesso à droga. A
substância não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa).
A fosfoetanolamina sintética foi
estudada pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice, hoje aposentado, enquanto
ele ainda era ligado ao Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros da
USP. Algumas pessoas tiveram acesso às cápsulas contendo a substância,
produzidas pelo professor, que usaram como medicamento contra o câncer. O
instituto disse, em nota, que a produção da droga foi um “ato oriundo de
decisão pessoal” de Chierice.
Em junho de 2014, a USP reforçou a
proibição de produção de qualquer tipo de substância que não tenha registro,
caso das fosfoetanolamina sintética. O instituto editou portaria determinando
que “tais tipos de substâncias só poderão ser produzidas e distribuídas pelos
pesquisadores do IQSC mediante a prévia apresentação das devidas licenças e dos
registros expedidos pelos órgãos competentes determinados na legislação [do
Ministério da Saúde e da Anvisa]”. De acordo com a instituição, desde a edição
da medida, não foram apresentados registros ou licenças que permitissem a
produção das cápsulas para uso como medicamento.
Judicialização
Desde então, pacientes que tinham
conhecimento das pesquisas passaram a recorrer à Justiça para ter acesso à
fosfoetanolamina sintética. De acordo com a advogada Cárita Almeida, que
representa pacientes interessados na droga, mais de 1,5 mil liminares com o
pedido de acesso à substância já foram apresentados à Justiça.
O Tribunal de Justiça de São Paulo
(TJSP) já havia impedido que uma paciente tivesse acesso ao produto. Diante do
posicionamento do tribunal, ela apresentou um recurso ao Supremo Tribunal
Federal (STF) que foi analisado pelo ministro Edson Fachin. No dia 8 deste mês,
ele suspendeu a determinação do TJSP, liberando o acesso dessa paciente às
cápsulas.
Após a decisão do ministro do STF, o
presidente do TJSP, desembargador José Renato Nalini, estendeu os efeitos da
liminar para todas as pessoas que solicitaram o acesso à mesma substância na
Justiça. “Conquanto legalidade e saúde sejam ambos princípios igualmente
fundamentais, na atual circunstância, o maior risco de perecimento é mesmo o da
garantia à saúde. Por essa linha de raciocínio, que deve ter sido também a que
conduziu a decisão do STF, é possível a liberação da entrega da substância”,
decidiu Nalini.
Ele lembrou que “a substância pedida
não é medicamento, já que assim não está registrada. Não se trata tampouco de
droga regularmente comercializada, mas de um experimento da Universidade de São
Paulo”. Ele afirmou que não há possível falha do Estado em não disponibilizar a
substância aos pacientes, mas acrescentou que não se pode ignorar os relatos de
pacientes que apontaram melhora em seu quadro clínico após uso da droga.
Apesar da liberação, o desembargador
disse que “caberá à USP e à Fazenda, para garantia da publicidade e
regularidade do processo de pesquisa, alertar os interessados da inexistência
de registros oficiais de eficácia da substância”.
Ontem, em evento na capital paulista,
o ministro Fachin disse que a decisão de liberar o acesso à fosfoetalonamina a
uma paciente com câncer foi excepcional. “Tratava-se de uma senhora que estava
em estado terminal, com alguns dias de vida, e que buscava o fornecimento
dessas cápsulas, que já estavam sendo fornecidas como um lenitivo da dor”,
disse.
A USP informou que os mandados
judiciais serão cumpridos, dentro da capacidade da universidade. A instituição
alega que não é uma indústria química nem farmacêutica e que “não tem condições
de produzir a substância em larga escala, para atender às centenas de liminares
judiciais que recebeu nas últimas semanas”.
A universidade afirmou ainda que a
substância fosfoetanolamina está disponível no mercado, produzida por indústrias
químicas, e pode ser adquirida em grandes quantidades pelas autoridades
públicas. “Não há, pois, nenhuma justificativa para obrigar a USP a produzi-la
sem garantia de qualidade”, completou.
De acordo com a Anvisa, nenhum
processo de registro foi apresentado para que a fosfoetanolamina possa ser
considerada um medicamento. “A etapa é fundamental para que a eficácia e
segurança do produto possa ser avaliada com base nos critérios científicos
aceitos mundialmente”. Para a obtenção do registro é preciso apresentar
documentos e testes clínicos.
Especialistas
Para o presidente da Sociedade
Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), Evanius Wiermann, não há como utilizar
a substância nos pacientes sem as devidas análises de segurança e eficácia.
“Não é certo sermos coniventes com uma droga que não tem evidência científica”,
disse, ao comentar a falta de testes em humanos. Segundo ele, é preciso
realizar um trabalho de pesquisa que prove se há benefícios. “Aí estaremos no
caminho certo.”
O chefe da Oncologia Clínica da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Hakaru Tadokoro, também discorda
do uso da substância sem que os testes clínicos sejam realizados e considera
isso uma irresponsabilidade. “A pessoa que vai tomar essa droga não sabe os
efeitos colaterais ou se é tóxica. Eventualmente, a pessoa está tomando a droga
que é correta mais essa droga [fosfoetanolamina] e, de repente, isso pode
anular o efeito de um medicamento oncológico que é eficaz”, disse.
Além disso, o oncologista observou
que as pessoas estão tomando a substância para todo tipo de câncer. “Isso não
existe. Cada tipo de câncer tem sua peculiaridade”, acrescentou.
Pacientes
terminais
Relatos positivos de usuários nas
redes sociais e na imprensa ajudaram a divulgar a droga entre pessoas com
câncer.
A advogada Mariana Frutuoso Pádua,
que representa alguns dos pacientes que pediram acesso à fosfoetanolamina por
meio da Justiça, disse que a droga desenvolvida na USP trouxe a possibilidade
de um tratamento alternativo e que já existem usuários beneficiados pelo uso
das cápsulas. Para ela, o acesso à substância seria uma garantia à vida, à
saúde e à dignidade da pessoa humana.
Em depoimento na Câmara de Vereadores
de São Carlos, a paciente Bernardete Cioffi, que tem um câncer incurável, disse
que utiliza a medicação somente para melhorar a qualidade de vida. Por meio de
redes sociais, ela declarou estar ciente dos possíveis riscos do uso de uma
droga não registrada.
“A decisão de fazer uso de uma substância
experimental e não testada oficialmente em humanos, e também não registrada na
Anvisa, foi uma decisão unicamente minha, sem que qualquer outra pessoa possa
ser responsabilizada em maior ou menor grau”.
De acordo com Bernardete, a decisão
de usar a substância sem registro na Anvisa ocorreu por falta de opção de
tratamento e de cura para o seu caso. “Luto pela continuidade das pesquisas de
maneira científica, séria e verdadeira, para [que] em cinco ou dez anos todas
as pessoas possam fazer uso digno da fosfoetanolamina sintética. Até lá, as
pessoas que se dispuserem, assim como eu, a se submeter ao processo
experimental, que o façam com sensatez e responsabilidade”, escreveu em uma
rede social.
Para o oncologista Hakaru Tadokoro, a
substância até poderá se tornar um medicamento útil, no entanto, a droga não
passou por nenhuma das fases necessárias ao seu uso seguro. “Quando pesquisamos
uma droga nova, são quatro fases. Na fase pré-clínica, nós vemos, por meio de
cultura de células tumorais, se essa droga tem alguma ação. Na fase 1, testamos
em alguns tipos de tumores. Na 2, em pacientes em que não há mais o que se
fazer, testamos a droga e vemos a dose que é possível. Na 3, comparamos a droga
nova com uma droga padrão. E essa droga não passou por nenhuma dessas fases,
infelizmente”, disse o médico.
POR AGÊNCIA BRASILIA.
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