domingo, 12 de julho de 2015

Cientistas bloqueiam o efeito da maconha sobre a memória

Em experimento com ratos, pesquisadores europeus conseguem usar o THC para aliviar a dor crônica sem provocar problemas como a amnésia. Segundo eles, a otimização molecular do composto pode melhorar também tratamento de cânceres e doenças psiquiátricas.
Um dos grandes obstáculos para o uso medicinal da maconha acaba de ser abalado por um grupo internacional de estudiosos. A polêmica planta tem como principal composto ativo o tetra-hidrocarbinol (THC), que causa perda de memória, mas também alivia a ansiedade, melhora o sono e reduz o crescimento de cânceres, entre outros benefícios indicados em estudos científicos.

 Durante experimento com ratos, pesquisadores das universidades de East Anglia (Reino Unido), de Barcelona (Espanha), de Pompeu Fabra (Espanha) e de outras instituições europeias inativaram um dos receptores da planta e conseguiram preservar o cognitivo das cobaias em tratamento para dor crônica. Os resultados foram publicados na revista Plos Biology.

Como base dos testes, os cientistas utilizaram dados de experimentos anteriores feitos com roedores sob o efeito do THC. Os animais não tinham o receptor da serotonina chamado de 5-HT2AR e reagiam de forma diferente à ação do composto. “Isso acontecia somente em determinados testes comportamentais, específicos para a memória e os efeitos cognitivos do THC. Esses resultados nos sugerem que pode haver uma maneira de diferenciar os efeitos de alívio da dor provocados pelo THC das consequências na memória”, destaca ao Correio Peter McCormick, um dos autores do estudo e professor de biologia celular da Universidade de East Anglia.

Ao realizar mais estudos comportamentais em roedores, como testes de memória padrão, o grupo de estudiosos percebeu que a ausência do receptor que interage com a serotonina, um neurotransmissor, reduzia o efeito amnésico do THC. Também observou que o tratamento para reduzir o 5HT2AR não alterou o alívio da dor gerado pelo composto da maconha. A soma das duas constatações, segundo os cientistas, pode enriquecer a busca por terapias que usem a cannabis de forma mais segura, não alterando, por exemplo, o humor, a percepção e a memória.

 “Esse estudo é a primeira evidência de que os efeitos do THC podem ser separados em nível molecular. Esse composto tem uso médico amplo, mas também é conhecido por induzir numerosos efeitos secundários indesejáveis, incluindo a dependência”, frisa McCormick.

Trabalhos anteriores da mesma equipe mostraram efeitos positivos do THC no combate ao câncer, o que torna a aposta de eliminar os efeitos negativos da droga ainda mais relevante, já que a doença tem se consolidado como uma das principais ameaças à saúde global. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), para 2030, são esperados 27 milhões de casos incidentes de tumores malignos e 17 milhões de mortes em decorrência de complicações deles.

 “O THC atua através de uma família de receptores celulares, os receptores de canabinoides. A nossa investigação anterior revelou que esses são responsáveis pelo efeito antitumoral do composto”, explica o especialista.

Os riscos
O novo desafio dos pesquisadores é tentar replicar o efeito da maconha que não prejudica a memória em seres humanos. “O que conseguimos até agora vai nos permitir ir à procura desse fenômeno em pessoas e tentar desenhar pequenas moléculas que possam interromper essa interação ou versões sintéticas do THC que evitem receptores associados ao 5HT2AR”, diz McCormick. “Vamos partir para testes em humanos. Queremos identificar por que em algumas regiões do cérebro esses receptores são capazes de se associar aos efeitos de THC em em outros não”, adianta McCormick.

Christian Muller, médico neurologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, também avalia que o trabalho dos cientistas internacionais é um passo importante para o futuro. E destaca que a mesma filosofia foi usada para melhorar outros tipos de substâncias, processo chamado de seletividade. “Ocorreu com a fluoxetina, exatamente com o objetivo de separar os efeitos negativos dos positivos, e também com medicamentos inibidores da recepção da serotonina”, destaca o especialista, referindo-se a substâncias usadas para tratar depressão, síndrome do pânico, entre outras complicações psiquiátricas.

 No caso da cannabis, Muller ressalta que é preciso estar atento ao efeito viciante da erva. “Temos que ter cuidado com o uso e a prescrição, já que o THC é responsável pelo vício. Estudos dessa linha precisam ser feitos de maneira ética”, defende.

Para Renato Malcher, professor do Laboratório de Neurobiologia da Universidade de Brasília (UnB), a ideia de separar bioquimicamente as funções dos receptores de canabinoides e de serotonina para reduzir efeitos colaterais do THC pode ter efeitos devastadores: “Se fizerem com pessoas o que fizeram com os ratos, corre-se o risco de desencadear quadros psiquiátricos seriíssimos, como ansiedade, paranoia e tendência suicida.

 Os dois grandes efeitos indesejáveis do THC puro são os transitórios sobre a memória de curto prazo e sobre o estado emocional. Ambos são reduzidos a níveis perfeitamente aceitáveis no controle de dores severas quando o THC não é separado do canabidiol (também presente na maconha) e quando as doses são feitas de forma assistida por metodologia médica”, alerta.

O especialista diz que, tanto puro quanto na maconha, o THC pode dificultar a retenção de memórias de curto prazo, mas não afeta a capacidade cognitiva da pessoa de forma permanente. “Isso talvez aconteça em adolescentes, mas não em adultos. Porém, no uso terapêutico, a associação com o canabidiol e outros componentes da maconha, permite doses menores, que são mantidas na medida adequada à redução das dores”, diz.

 No caso do tratamento da dor crônica, quando o uso é feito de forma adequada, o desconforto severo é muito mais impactante, cognitiva e emocionalmente, na vida do paciente do que os possíveis efeitos transitórios sobre a memória e a eventual dependência, diz o especialista. Por isso, defende Malcher, a relação custo-benefício deve ser considerada caso a caso.

 “A morfina, por exemplo, tem efeitos indesejáveis muito mais graves e isso não impede o uso para dores severas”, complementa.

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