quinta-feira, 2 de abril de 2015

Psicanálise da comida

Primeiro passo de autonomia que ocorre na vida, ao sair do útero, é pôr pra dentro o ar que está em volta, respirar. Se isso nos sair bem, ensaiamos um segundo movimento, comer, mantendo certa harmonia entre as duas atitudes. Essas ações, de sobrevivência, marcam modos de ser, de se conectar com o mundo, indo do  apreensivo ao tranquilo, do prazeroso ao impossível. As oscilações são próprias dessa navegação do dia e noite da vida.
Pois comer é ainda mais complicado, pois precisa-se do outro, que me cuide, que me ame, que me dê o que comer. Se ela nos der o peito nos momentos oportunos, de um jeito apaixonado, aprenderemos não só a comer, mas também a abrir caminhos e fazer conexões mundo afora. A mãe literalmente nos restaura com seu leite vivo, são vivas as células de seu corpo que vão pra dentro do bebê. De verdade, engolimos, comemos a mãe. Comer passa a ser prazer amoroso, e restaurantes não são mais que extensões desses momentos primitivos da vida. Por isso eles são importantes para corpo e espírito, eles restauram.
"Oh, subalimentados dos sonhos/poesia é para comer" (Natália Correia, poeta portuguesa). Oh, nós, subalimentados da alma/poesia é para nutrir (produção caseira). Ao longo da vida enxergamos que comer está muito mais ligado aos prazeres do que, apenas, alimentar células. Prazeres não só da gula, prazer de receber afeto, de ser amado, de amar, trocar, aprender. E assim vamo-nos matando diariamente, em eterna negociação, dentro de nós mesmos. O dilema cotidiano: comer o quê, agora ou daqui a pouco? Para os que têm o privilégio de escolher, sempre é uma escolha que pode mudar o dia. Tem também aquela expressão, autoexplicativa: deve ter sido alguma coisa que comi.
Às vezes comer sozinho é necessário. Já cozinhar só para si não tem o mesmo sabor, pois é algo que envolve corpo, alma, mente, espírito, ora é nossa morfina, ora, ritalina. A comida é também partilha. Na infância aprendemos a dividir a mesa somente com a família. O fato é que dividimos a mesa com poucas pessoas, na vida! Almoçar com alguém é uma coisa, jantar já é outra, completamente diferente. O café da manhã é sublime, para alguns, terror e para outros, redenção.
Comer é bem mais do que comer.

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