terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Heróis dos pés de barro

Uma das coisas que me impressionam é o conceito de herói que seguimentos sociais da classe dominante impõem sobre a opinião pública, que acabam por se consolidar como senso comum e como verdade aceita por todos.

No dia 28 de dezembro de 2014 eu passava por um televisor ligado na TV Globo no programa matinal Esporte Espetacular. Chamou-me a atenção a emoção com que a produção e apresentadores tentavam recordar de pessoas do mundo do esporte que eles chamavam de heróis. Umas já mortas e outras como que mortas vivas, nas quais o programa insuflava vida e admiração.

Uma delas era Ayrton Senna. Para emocionar apresentaram senas do acidente que o vitimou; de derrotas que vivenciou em sua carreira automobilística e que superou graças a sua alegada genialidade e vitórias obtidas em disputas difíceis e complicadas.

Não é só porque não gosto de corrida automobilística, que não tem nada de povo nem de interesse nacional, mas não consigo ver nada de heroico em Ayrton Senna.

Claro, vejo na história daquele fantástico piloto grandes esforços pessoais e inteligência para vencer disputas, atuando em poderosas empresas que investem bilhões de dólares em bolsas e no sistema financeiro, mas heroísmo nunca vi e não concordo que sua biografia seja vista como tal.

O que Ayrton fez por seu povo? Que fez pelo Brasil? Quais suas contribuições em favor do desenvolvimento nacional? Quais suas obras sociais?

Não desconheço que sua família usa seu prestígio e seu nome para gestar uma ONG assistencialista, mas que não tem nenhum peso no Brasil em favor de nosso povo.

Que herói foi ou é Ayrton Senna? Penso que a burguesia nacional assim o considera porque o esportista de carros de corrida vendia produtos e servia de alavanca de audiência da TV Globo, correndo por várias pistas luxuosas do mundo, por onde se derramava muito dinheiro provindo do mundo subdesenvolvido e proletário.

Depois, no mesmo programa global, falou-se no “fenômeno” Ronaldo. Outro. Que contribuições o Ronaldo deu ou dá ao Brasil, de quem chegou até sentir vergonha num momento em que nosso País foi mais atacado e ameaçado de golpes durante a Copa em 2014?

Como pode chamar-se de herói a alguém que saiu das favelas e virou as costas para os pobres e para o povo, plenamente satisfeito e embasbacado com o mundo acomodado e conservador da burguesia nacional?

O Programa Espetacular ainda elencou outro “herói”. Apresentou Neymar, o jogador do Barcelona. Somente do Barcelona, porque no Brasil o tal não joga nada. Que herói é esse guri? Qual é sua consciência social? Qual é seu compromisso com o povo brasileiro? Qual foi sua postura durante a campanha eleitoral à presidência do Brasil? Não poderia ser pior, como a do seu ídolo Ronaldo.

Quando o Neymar abre a boca nas entrevistas de TVs é uma tristeza. Suas palavras são balões vazios saídos de uma cabeça oca, sem nenhum conteúdo sério e digno de respeito. Suas risadas desconexas e gestos são demonstrativos de enorme futilidade mental desse personagem.

Que heróis são Senna, Ronaldo e Neymar Jr? São tão heróis quantos os guerreiros de Pedro Bial, personagens de seu programa pornográfico e lixo televisivo BBB, que só interessa aos que têm os meios de comunicação como entorpecimento e traição social.

São heróis de pés de barro. São “heróis” cujos pés pisam no ar, fora e desconectados da terra pisada e trabalhada pelo povo que eles não representam. Flutuam sobre o povo que ajudam a explorar, enrolar e enganar.

A noção de heróis é experiência profundamente humana que vem desde muito cedo desde a antiguidade. Define-se como ações que superam quase todas as possibilidades de limites do ser humano. Geralmente são heróis ou heroínas as pessoas que se dedicaram a fazer o bem muito mais ao outro, ao próximo, à coletividade, em grande escala, ao ponto de sacrificar interesses pessoais e a própria vida como pessoa física.

Heróis mesmo são Zumbi, Tiradentes, Anita Garibaldi, Carlos Marighela, Luiz Carlos Prestes e tantos que se entregaram ao povo, sem concessões aos traidores.

Como líder do Quilombola dos Palmares, Zumbi, em defesa de negros, indígenas e brancos pobres, lutou pela edificação de uma república onde houvesse justiça social. Na Serra da Barriga organizou uma sofisticada sociedade onde todos seus integrantes trabalhavam e repartiam os bens entre si, eliminando a escravidão e as torturas.

Graças à sua luta foi assassinado porque traído por companheiros modelo Senna, Ronaldo, Neymar e Pelé, que não estão nem aí para o que se passa com o nosso povo.

Herói mesmo é Joaquim José Silva Xavier, o Tiradentes. Este herói nacional, ao perceber o nível de exploração imposta pela coroa de Portugal, juntou-se aos padres Carlos Correia de Toledo e Melo, José da Silva e Oliveira Rolim e Manuel Rodrigues da Costa, a poetas, a intelectuais e a militares para proclamar uma república independente da Europa. 
Mesmo bem antes das concepções socialistas e das definições modernas de nação o seu projeto era o de estabelecer um governo de caráter republicano, de criar indústrias no País e universidades. 
O conceito de república dos inconfidentes não incluía forças armadas e militares como as conhecemos hoje. Em vez disso, toda a população deveria usar armas, em forma de milícias populares, quando todos deveriam se sentir responsáveis pela segurança da nova sociedade.

Por “ofender” os interesses dos colonizadores e proprietários de terras e de escravos, Tiradentes traído foi condenado à forca e esquartejado.
Tiradentes, sim, foi herói e digno de assim ser reconhecido. Ante a morte assumiu sozinho a responsabilidade pela inconfidência, não temendo seu compromisso com a história.

Anita Garibaldi, ainda com 18 anos, afundada num casamento forçado pelo contexto de miséria e de pobreza, não fugiu do amor que José Garibaldi despertou no seu coração.

O amor de Anita era duplo e não romântico e mesquinho. Ao deparar-se com José ergueu-se para nova relação como mulher, esposa, mãe e revolucionária de duas pátrias: Brasil e Itália.

No Brasil, nos limites do que os revolucionários farroupilhas podiam ver, a luta era a mesma que animava Tiradentes. Anita uniu-se ao guerrilheiro José Garibaldi para defender os interesses dos trabalhadores e negros do sul, pensando proclamar no Rio Grande do Sul um País independente e livre da exploração colonial.

Anita Garibaldi, sim, era heroína brasileira. Nunca se rendeu ao inimigo e amou apaixonadamente um homem e uma revolução, de modo indissociável.

Heróis são os que caminham as estradas da revolução, os que se rebelam contra as injustiças e lutam pela paz entre irmãos.
Os outros não são heróis. São vendidos e puxa-saco, por mais que muita gente se emocione com eles. No máximo são heróis de pés de barro. Não constroem a história.
(Dom Orvandil Moreira Barbosa, editor do blog +Cartas e Reflexões Proféticas (www.cartasprofeticas.org), presidente da Ibrapaz, ativista da Anistia Internacional e bispo da Diocese Brasil Central da Igreja Anglicana)


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