domingo, 28 de setembro de 2014

Apagão da autoridade

A multiplicação dos crimes em família tem deixado a opinião pública em estado de choque. Paira no ar a mesma pergunta que Fellini pôs na boca de um dos personagens do seu filme Ensaio de orquestra, quando, ao contemplar o caos que tomara conta dos músicos depois da destituição do maestro, pergunta, perplexo: "Como é que chegamos a isto?" A interrogação está subjacente nas  reações de todos nós, caros leitores, que, atordoados, tentamos encontrar resposta para a escalada de maldade que tomou conta do cotidiano.
A tragédia que tem fustigado algumas famílias aparece tingida por marcas típicas da atual crônica policial: uso de drogas, dissolução da família e crise da autoridade. Não sou juiz de ninguém. Mas minha experiência profissional indica a presença de um elo que dá unidade aos crimes que destruíram inúmeros lares: o esgarçamento das relações familiares. Há exceções, é claro. Desequilíbrios e patologias independem da boa vontade de pais e filhos. A regra, no entanto, indica que o crime hediondo costuma ser o dramático corolário de um silogismo que se fundamenta nas premissas do egoísmo e da ausência, sobretudo paterna. A desestruturação da família está, de fato, na raiz da tragédia.
Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações nos meandros das patologias mentais. Podem ter razão. Mas nem sempre. Independentemente dos possíveis surtos psicóticos, causa imediata de crimes brutais, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: a desumanização das relações familiares. O crime intra e extralar medra no terreno fertilizado pela ausência. O uso das drogas, verdadeiro estopim da loucura final, é, frequentemente, o resultado da falência da família.
A ausência de limites e a crise da autoridade estão na outra ponta do problema. Transformou-se o prazer em regra absoluta. O sacrifício, a renúncia e o sofrimento, realidades inerentes ao cotidiano de todos nós, foram excomungados pelo marketing do consumismo alucinado. Decretada a demissão dos limites e suprimido qualquer assomo de autoridade - dos pais, da escola e do Estado -, sobra a barbárie. A responsabilidade, consequência direta e imediata dos atos humanos, simplesmente evaporou.
Em todos os campos. O político ladrão e aético não vai para a cadeia. Renuncia ao mandato. O delinquente juvenil não responde por seus atos. É "de menor".
A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm gerado uma onda de superpredadores. Gastamos muito tempo no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas. O saldo é uma geração desorientada e vazia. O inchaço do ego e o EMAGRECIMENTO da solidariedade estão na origem de inúmeras patologias.

A forja do caráter, compatível com o clima  de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. A pena é que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio.

O pragmatismo e a irresponsabilidade de alguns setores do mundo do entretenimento estão na outra ponta do problema. A valorização do sucesso sem limites éticos, a apresentação de desvios comportamentais num clima de normalidade e a consagração da impunidade têm colaborado para o aparecimento de mauricinhos do crime. Apoiados numa manipulação do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas da televisão crescem à sombra da exploração das paixões humanas.
As análises dos especialistas e as políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo. Menos da crise da família e da demissão da autoridade. Mas o nó está aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de crueldade sem precedentes. É só uma questão de tempo. Já estamos ouvindo as primeiras explosões do barril de pólvora.

O horror dos lares destruídos pelo ódio não está nas telas dos cinemas. Está batendo às portas das casas de um Brasil que precisa resgatar a cordialidade e a tolerância.

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