segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Sobre Deus e maçãs

Vejo Deus com certa frequência. Há alguns anos reparei que ele gosta de chegar pela manhã, ali entre nove e meia e dez e 15, nos dias de sol. Não é dado a cerimônias, como as bocas ortodoxas insistem em sustentar. Estou convencida de que fazem dele um péssimo juízo e isso, no final das contas, atrapalha a todos nós, que temos obsessão por referências estáveis. Seria melhor, mais eficiente e decente se rezássemos diante de pilares de concreto, se o que nos interessa são crenças vagas e arremedos de espiritualidade. A questão da ilusão, aliás, é um tema recorrente em nossas conversas. Refaço sempre a pergunta sobre fé: o que tu ganhas com isso? Ele usa uma mesma reação, olha para a janela, sorri, então me olha de novo e convida a dividir uma maçã. Não gosto de maçãs, mas procuro tê-las em casa por dois motivos: por ele e pela minha úlcera. Costumo brincar que o estímulo divino mantém minha saúde gástrica: vai tudo bem, graças a Deus! Não fosse pela lembrança dele, meu estômago murcharia tanto quanto a fruta esquecida na geladeira. Sim, ele prefere suas maçãs geladas. Acho até charmoso Deus assim, sentado no chão, as costas escoradas no sofá, uma faca a retirar a casca, partir a polpa ao meio e aparar as sementes antes de levar à boca nacos miúdos de maçã. O cara não tem pressa. Fica horas ali, comendo e falando e me ouvindo. Muitas vezes a fruta escurece na mão dele enquanto aguarda que eu fale alguma coisa útil. Coitado. Mas o homem vem porque quer. Nunca convidei. Percebi que quando chove ou venta, ou quando chove e venta, ele não aparece. Coincidência ou não, nesses dias é quando me vejo mais agoniada. Já falamos sobre isso também. De agonias. Não imaginava que Deus tivesse palpitações, que sentisse a garganta fechando, que sua cabeça latejasse de preocupação ou ansiedade, que tivesse herpes ou aftas de aflição. Segundo ele, acontece seguidamente. São mazelas humanas, fiz gracinha. Não retrucou. Sacudiu a cabeça, apenas, e manteve-se em silêncio. Da última vez que veio, coloquei meu CD do Gil naquela música “Se eu quiser falar com Deus”, certa de que estava surpreendendo. Pelo visto não agradei. A expressão do rosto de Deus mudou de um jeito. A pele da testa fez três vincos na horizontal e tudo nele de repente ficou meio transparente. Disse que era a minha vez de ouvir. Tudo bem, consenti, e fui me acomodando ao lado dele no chão da sala. Grave, curto e grosso, confessou não ser quem eu pensava: de Deus não tenho nada, querida. Estatelei, perdi a reação, as pontas dos meus dedos roxos de susto. Eu estava encostada em Deus, perna com perna, como assim, não era ele? Não sou. Venho e permaneço até que te distraias e não lembres mais de te ferir com a faca das maçãs. Se nosso papo é bom, te fortaleces o suficiente até os próximos dias ensolarados e estás a salvo de ti. Deus de verdade tem um poder sem fim. Eu nem sei evitar temporais. Dependo do tempo aberto para cruzar a tua janela. Entendi tudo. Desde então chuvisca todas as manhãs até perto do meio-dia.

 Por: Andréia Alves Pires.

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Um comentário:

  1. Lindo artigo. Parabéns pelo artigo. É bem assim mesmo que eu acho que deveria ser a relação do homem com Deus, próxima, sem intermediário.

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