quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O submundo do crack



Um mundo a parte. Vidas e histórias esquecidas, primeiro, por eles mesmos, depois, pelo resto da sociedade. Vivem a margem do mundo “normal” dos homens. Não sabem ao certo porque vivem, onde estão, nem mesmo quem são. Apenas existem. Uma vida resumida em fissura, fumar pedras e muita correria para conseguir mais. Para eles a luz no final do túnel é quase que uma ilusão. Nada mais existe além da escuridão e da fumaça que emerge das pedras fumadas. Chocante? Pois essa é a triste realidade dos usuários de crack. Uma realidade que dói porque ultrapassa a imaginação. Conheçam um pouco do submundo do crack


Eles existem, e não são poucos. Estão sempre por aí, vagando pelas ruas, tentando na maioria das vezes saciar um desejo incontrolável. Alguns tem grana, outros não, e para obterem o prazer imediato que o crack proporciona, não medem atitudes, não pensam se estão correndo risco de morte ou se estão machucando alguém. Quem vive nesse submundo é escravo do crack, por isso hoje é importante que as pessoas saibam sobre a prevenção, mas é essencial que algo seja feito para combater essa droga que tem se tornado uma epidemia.
Saber que esse mundo existe todos sabem, mas são poucos que tem coragem de adentrar nesse mundo para conhecer como vivem essas pessoas, o que os tornou dependentes, quais as sensações que a pedra causa em seus corpos, os medos e o que fazer para sair dessa escuridão. Para isso precisou uma mulher, jornalista, enfrentar preconceitos da sociedade, dos amigos e da própria família, para descobrir e mostrar como o crack tem destruído a vida e os sonhos de muitos passo-fundenses. Ana Paula Nonnenmacher não teve medo em momento algum, simplesmente decidiu que descobriria como viviam e como funcionava a vida de 50 usuários de crack de Passo Fundo.
Existem poucas obras literárias relacionadas ao crack no Brasil, nesse sentido a obra “Meninos do Crack” da passo-fundense Ana Paula, é praticamente pioneiro, no sentido de relatar histórias verdadeiras de 25 homens e 25 mulheres dependentes de crack que vivem hoje no município. Histórias verídicas, marcantes e na maioria tristes, todas elas escritas em primeira pessoa, colhidas dentro de “fumódromos”, nas ruas e praças púbicas da cidade. Uma obra iniciada ainda em 2008 revela uma realidade que muitas vezes preferimos esquecer ou fingir que não vimos.
Para escrever o livro Ana foi em “bocas” (pontos de venda de drogas), além de pontos de prostituição onde conversou e escutou muito usuários. Mas nem sempre sua busca foi assim tão fácil. “No começo foi difícil chegar nos usuários. Eles não querem dar depoimento, é complicado, tem que ter muita persistência. Tem que ir atrás, explicar, e mesmo assim eles não gostam de dar depoimentos se você não pagar ao menos um lanche pra eles. O usuário de crack é assim, ele não vai falar, não vai fazer nada de graça. Não, foi o que eu mais escutei, mas com o tempo acabei me tornando conhecida em alguns lugares e pelos próprios usuários”, contou.
Mesmo contra a vontade da família Ana chegou a passar um dia inteiro dentro de um fumódromo com usuários de crack, de acordo com ela a experiência foi imensamente triste, não existem palavras que possam expressar tudo o que viu naquele dia. “O homem usuário de crack geralmente vai roubar para conseguir a droga, já para a mulher é mais fácil se prostituir. Eles não costumam planejar grandes assaltos, para eles é mais fácil assaltar um pedestre, um ônibus... Precisam do dinheiro rápido, eles querem a pedra rapidamente... Eu senti o sofrimento deles, muitos queriam de verdade sair do vicio e aquilo me dava um desespero. Presenciei cenas horríveis, cheguei a ficar um dia todo no fumódromo, o que eu vi lá só indo também e vendo com os próprios olhos para acreditar... Não tem como expressar, nenhuma palavra pode demonstrar a dor, a alucinação... Nesse dia tinha uma menina que estava alucinada e uma outra dizendo que haviam cobras no cabelo dela. Elas começaram a cortar todo o cabelo da menina. Eles estão sempre naquele pânico que a polícia está vindo, que algo vai acontecer. É horrível”, disse.
Mas não eram só os usuários que eram entrevistados, Ana Paula também teve sua ficha levantada por muita gente pelos fumódromos por andou passou. “No início revistaram a minha bolsa, pegaram minha identidade, levaram e voltaram depois de uma hora dizendo que eu não era da polícia. Eles sabiam tudo a meu respeito, inclusive onde eu morava e o nome dos meus pais”, contou. Um risco que segundo ela valeu a pena, pois agora muitas pessoas podem saber como funciona a vida de um viciado, antes de começar a julgar sem saber. E esse é um dos objetivos do livro, mostrar a importância da família no desenvolvimento da criança e do adolescente. A maioria das histórias relatadas no livro, são de pessoas que enfrentaram problemas familiares ainda durante a infância.
Fumódromos
Os fumódromos são pontos de consumo e venda de crack. Conforme Ana Paula existem em alguns locais onde a droga é apenas vendida e outros onde o usuário pode comprar a droga e consumir, esse local é então denominado “fumódromo”, onde todos se reúnem e fuma juntos. “Tem gente que chega de carrão na boca. E existe uma diferença por parte do tratamento do usuário que tem dinheiro e daquele que é desprovido de dinheiro. O que tem dinheiro geralmente tem uma salinha vip, que é para os outros não ficarem pedindo a droga para ele”, explicou.
Confira partes de depoimentos retirados do livro “Meninos do crack”. De acordo com Ana Paula, todos os depoimentos foram autorizados pelos usuários para a publicação do livro. Nomes ficaram em sigilo para preservar a identidade das pessoas.
“Com o crack, tudo muda, porque ele passa a dominar a pessoa de uma forma que ninguém explica. A sensação é difícil explicar, porque só quem usa sabe como é. Nos primeiros segundos, é um prazer imenso, mas logo o efeito ilusório vai passando, a língua trava, os olhos ficam grandes e a fisionomia muda completamente. Sem falar nas conseqüências que a pedra te traz. Sempre fui trabalhador honesto e, de repente, comecei a assaltar. Foi tudo muito rápido. Parece que não é a minha história de vida, mas infelizmente é. Fiquei preso três anos, dez meses e vinte e dois dias. Devo isso ao crack.”
Antonio, 33 anos, usuário de crack há 13 anos
“Assim que pulamos, ele me deu um soco, dizendo que não ia me pagar nada, porque eu era uma vagabunda viciada. Não entendia o que estava se passando. Ele não me tocou, não fez sexo comigo, só me batia. A socos e pontapés, fui perdendo minhas forças. Depois de um tempo que ele estava me espancando, outro homem pulou o muro e começou a me bater também. Estava grávida de cinco meses e disse isso a eles. Então só me bateram no rosto. Eles me deformaram o lado esquerdo. Eu gritei pedindo socorro, mas ninguém ouviu. Só lembro de ter apanhado muito e ter desmaiado. [...] Permaneci por quinze dias internada. Passei por uma cirurgia plástica onde reconstruíram o meu rosto, com uma platina. [...] Não agüentei ficar mais tempo no hospital. Eu fugi, com dreno e tudo, e fui fumar como uma maluca. Quando se da o primeiro pega, suas dores se vão com a fumaça. Não se sente mais nada. Aproveitei e arranquei o dreno com minhas próprias mãos. A pedra me tirou o sentido da vida. Durmo por aí, nas casas abandonadas. Me prostituo por dez reais, porque os caras não pagam mais que isso. Meu bebê, assim que nasceu, foi levado. Sei da minha realidade, falei para o juiz que não tinha condições de ficar com ele.”
Fabianinha, 29 anos, usuária de crack há 10 anos
“Acordo em um ambiente onde todos se drogam. Somos em seis, as vezes mais. Ficamos em uma casa onde não tem nada. As vezes só fico observando: um que briga com o outro por causa de um pega, o outro que se queixa de fome e o outro que sai correndo roubar. Me tranco no meu mundo e não falo nada. Nem penso muito, fico na minha. Nada vai mudar. Vou fazer o quê? Não tenho sida, nem expectativas e nem ninguém para contar. Sempre foi assim, acho que desde que eu nasci. Não tive amor nem carinho de mãe. Como ela tem mais nove filhos, temos que nos virar.”
Henrique, 18 anos, usuário de crack há um ano
“Simplesmente a ideia surgiu: eu iria me jogar em baixo de um carro, mas não com o propósito de morrer. Estava doido de tanta vontade. Pensei na tática: assim que o carro viesse, em alta velocidade, eu me atravessaria na frente dele. Fiz isso. [...] Esse vício é o demônio. Se faz loucuras, não se pensa em nada, nem na própria vida.”
Sandro, 28 anos, usuário de crack há sete anos
“As pedras te sugam. Elas vão sugando toda a força, toda a energia. Levam tua vida para um caminho onde andamos como seres rastejantes, em busca de um pega. Um pega que dura muito pouco. A sensação de pavor chega e se precisa de mais uma pedra para sair do pânico. O círculo não pára.”
Kátia, 45 anos, usuária de crack há 15 anos
“Liguei para um caminhão de mudanças, coloquei tudo que nós tínhamos, dentro da nossa casa, e segui em frente. Parei em frente a uma loja de móveis usados e vendi tudo, móvel por móvel. Peguei o dinheiro e saí, feito louco, pelas ruas. Eu tinha resolvido meu problema. Tinha o dinheiro para me drogar. É assim que ocorre quando se é um viciado, não se pensa em nada.”
Piá, 25 anos, usuário de crack há nove anos.


Por Beatriz Scarioti no DM Passo Fundo.

Minha cidade como muitas, estão com esse problema social. O que você pensa disso?

Um comentário:

  1. Estou atendendo um cliente aqui mesmo em São Paulo. Fica perto da estação Júlio Prestes, um terminal ferroviário próximo à Estação da Luz. Aclimação, centro de São Paulo.
    Ao sair do terminal vemos os tipos. Uma aglomeração de dezenas de pessoas com um cachimbo de metal na mão. Existem pontos onde a aglomeração é mais densa. Ali é um ponto de venda de crack.
    Os tipos são peculiares: corpos e roupas sujas, enrolados em cobertor e olhar perdido, distante. São apropriadamente chamados de mortos-vivos.
    O policiamento não os incomoda. Parecem não se importar muito com a deprimente cena.
    Uma pedra custa R$ 10,00 mas pode-se fracionar. Os tipos compram a pedra e ali mesmo, sem se importar com os transeuntes ou a polícia acendem seus cachimbos.
    A polícia nada pode fazer contra os usuários. E os traficantes levam pequenas quantidades que são imediatamente vendidas dificultando o flagrante. Se utilizassem a inteligência de segurança poderiam chegar aos verdadeiros traficantes. Não aqueles que vendem algumas pedras, que são apenas distribuidores. Poderiam chegar a quem os abastecem. Mas parece faltar vontade.
    Sinto-me triste por ter que passar naquela região, onde seres humanos chegam ao máximo da degradação. Animais têm mais amor próprio do que os mortos-vivos, verdadeiros zumbis urbanos condenados e sem perspectiva.
    Espero que as autoridades encontrem um meio de livrá-los desta sina... Se puder cooperar, estou disposto a tentar salvá-los.

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