quarta-feira, 9 de junho de 2010

Ficha Limpa, a vitória da democracia brasileira


Hoje é um dia importante para o aperfeiçoamento da democracia no Brasil. O presidente da República sancionou o projeto de lei popular 518/09, já aprovado pela Câmara Federal e pelo Senado. Esse projeto de lei foi denominado popularmente de Projeto Ficha Limpa. Prevê que não podem ser eleitos os candidatos políticos “que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de três anos, após o cumprimento da pena”.
É preciso impedir que bandidos se candidatem. E, ainda mais, que sejam eleitos. Se alguém estiver respondendo judicialmente por crime de corrupção, de abuso do poder econômico, de homicídio e tráfico de drogas, de racismo, tortura e terrorismo, é claro que não estará habilitado para representar o povo. E, ainda mais perigosamente, para ter as chaves do cofre do dinheiro público e para exercer o poder de fazer as leis, ou de administrar as cidades, os Estados e o País.
Mandatos políticos são sublimes e de extrema responsabilidade. Exigem habilitação, preparo e idoneidade moral. Exercem forte impacto sobre toda a sociedade. Além de terem consigo as principais decisões sociais e econômicas, também exercem profunda influência representativa. Por terem grande visibilidade, influenciam mentes e corações. Se um representante do povo é mau caráter, pelo lugar de representação que ocupa acaba exercendo grande influência negativa sobre a conduta da população. É, de certo modo como os artistas e atores. Muita gente neles se inspira e procura imitá-los.
O projeto Ficha Limpa foi uma iniciativa popular, prevista pela Constituição Brasileira de 1988. Tanto quanto o plebiscito, é um dos recursos que a população tem para se expressar por democracia direta, sem a mediação de representantes. Hoje, entretanto, é preciso fazer justiça e homenagem a quem principalmente as merece.
Há 10 anos, foi aprovado o primeiro projeto brasileiro de iniciativa popular, o projeto de lei nº 9840/99. Essa lei inibe o uso da máquina administrativa em favor da própria candidatura e determina que, se o candidato estiver comprando voto, além da pena prevista em lei, ainda tem que enfrentar processo sumário, ter o registro cassado e efetuar o pagamento de multa. No passado recente, o problema era grave. Em algumas regiões do Brasil, vendia-se e comprava-se o voto por um caixão, por um par de chinelos, por um saco de cimento ou por uma dentadura. O voto valia pouco, apenas o preço de uma necessidade imediata. Foi preciso uma ampla campanha intitulada “O voto não tem preço, tem consequências”. Era preciso inibir a compra do voto. Mas também era necessário conscientizar o povo para ele não vender o seu voto.
Lembro-me bem dessa iniciativa. Na ocasião, eu era o presidente do Conselho Nacional do Laicato Católico do Brasil. Todos os meses, as principais lideranças e assessorias pastorais tinham um encontro com a Presidência e a Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB, em Brasília. Recém havia sido reestruturada a Comissão Brasileira de Justiça e Paz, até então coordenada por Cândido Mendes, irmão de D. Luciano Mendes. Essa Comissão havia prestado um grande serviço ao Brasil, especialmente na luta pela anistia e na defesa aos Direitos Humanos. Assumiu-a, então, no final da década de 1990, Francisco Whitaker, atual coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Por limite de hospedagem e austeridade eclesial, sempre compartilhava com ele o mesmo quarto de dormir, que comportava diversas camas. Antes que o sono chegasse, trocávamos algumas palavras sobre nossos trabalhos pastorais. Nessa simplicidade foi que dei meu aceite para empenhar as principais lideranças de leigos católicos do Brasil a fim de coletar assinaturas em favor de um projeto de lei contra a compra de votos.
A tarefa não foi fácil. Durante todo o ano de 1998, milhares de lideranças, nas paróquias, movimentos e pastorais, foram coletar assinaturas. Ao final das celebrações, com uma pequena mesa, era solicitado aos participantes das missas que deixassem sua assinatura e número da cédula de identidade. Nem sempre éramos compreendidos. A iniciativa era muito inusitada. Alguns, ainda mais empenhados, foram para as ruas, praças, rodoviárias e aeroportos, aos estádios e aos desfiles, às escolas e universidades.
Gente simples, idosos e jovens, catequistas e lideranças, foi muita gente que assumiu a ética na política como compromisso cristão. Também muitas entidades, associações e sindicatos se aliaram à causa. Mas importante mesmo, para obter assinaturas na época, foi o trabalho de base da Igreja, apoiado pela CNBB. Ainda não dispúnhamos da internet, com a facilidade e abrangência que existe hoje. Por isso, a primeira experiência não alcançou a meta de 1 milhão de assinaturas. Assim, na assembleia dos bispos, em Itaici-SP, ficou decidido que a campanha continuaria no ano seguinte. Assim sucedeu. A primeira lei de iniciativa popular foi aprovada. Depois, foi necessário acompanhar sua execução. Criaram-se comitês de acompanhamento dos processos eleitorais e chegou-se, em 2006, pela OAB-seção Goiás, à criação de um número de telefone exclusivo para o disque-denúncia em caso de compra de voto.
O atual projeto de lei Ficha Limpa chegou ao Congresso em setembro do ano passado. Naquele mês, já tinha obtido 1 milhão e 600 mil assinaturas. Às vésperas de sua aprovação no Senado, tinha conquistado 2 milhões, por meio da internet. Para essa mobilização de assinaturas, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral utilizou a mesma rede social que havia sido formada para criar e, depois, para fiscalizar a aplicação da lei que pune a compra de votos. Essa rede, tão bem conhecida por nós, envolve 10 mil paróquias, 27 seccionais da OAB, associações de bairro e entidades sindicais, além da participação mais recente do Ministério Público.
Alguns políticos diziam que era mais fácil uma vaca voar que obter êxito esse projeto popular Ficha Limpa. Talvez ignoram que a sociedade brasileira dispõe de entidades com credibilidade histórica, que aprendemos a tecer redes sociais e a fazer bom uso das novas tecnologias da comunicação e, especialmente, que obtivemos experiência e crescemos em consciência pública. Mas essa história não termina aqui. Outros capítulos precisam ser construídos e escritos. Para uma autêntica reforma política no Brasil, só mesmo se for por iniciativa popular. Novas formas de financiamento das campanhas e uso das emendas parlamentares são apenas alguns dos grandes temas a serem enfrentados. Longa é a história de aperfeiçoamento da democracia brasileira.

Wolmir Amado

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