terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Em terra de cego



Quem tem um olho pode ser um louco ou um monstro! H.G. Wells contou a história de um homem que sofreu um acidente, durante a prática de esqui numa montanha coberta de neve. Quando acordou, viu-se socorrido numa pequena comunidade, um lugarejo solitário, onde todos os moradores eram cegos. A explicação dada é que o reflexo solar na neve cegou os primeiros moradores, e, no decorrer de gerações, a cegueira tornou-se congênita. Todos nasciam sem olhos. O homem tentou revelar algumas coisas e mostrar como o mundo de fato era, desmentindo os anfitriões e catedráticos tidos como sábios e experientes do lugar, entretanto, ele foi considerado louco e conduzido a um médico. O doutor constatou que o homem tinha algo sob as sobrancelhas, “em forma oval, ou circular, algo aleijado que se move”, causando alucinações. Fizeram a cirurgia de “reparo”, extraíram “os aleijões” (olhos), para deixá-lo normal como todos.

José Saramago, ao escrever Ensaio sobre a Cegueira, conta a história de uma mulher que finge ser cega para não ser escravizada pelo povo cego, que não sabia da verdade. Isto vale uma moral que contraria o antigo provérbio (em terra de cego, quem tem um olho é rei). Contraria também o pensamento que, ao longo da história, alude à cegueira numa perspectiva depreciativa. A literatura antiga fornece os exemplos de Édipo e Tirésias, personagens que mostram a cegueira associada ao estigma da punição. O provérbio ainda contradiz outra lição dada pelo filósofo Platão, na famosa Caverna, onde as pessoas ficavam contentes com o mundinho das sombras e com a viseira nos olhos, sem a liberdade que o verdadeiro conhecimento nos dá, embora, vez por outra, ficamos presos aos conhecimentos que nos deixam vulneráveis, tais como fofocas ou realidades sinistras de gente influente e importante. Afinal, a vida pública, com seus poderes políticos, não seria uma mistura de “hipocrisia, conchavo, acobertamento” e troca de favores e silêncios?

Às vezes, quando se tem os dotes de uma visão além do comum, precisamos aprender a fechar os olhos. Se ouvimos ou temos informações que são um tanto quanto perigosas, precisamos aprender a tapar os ouvidos e nos calar. Porque a maioria dos casos na realidade e na literatura acaba em catástrofe para os tidos como "supercientes, ou dotados de boa memória", levando sempre a pior.

A debilidade física não impede o homem de se sobressair, demonstrar a capacidade e apreciar o belo. Há vários exemplos: Beethoven ficou surdo e ainda compôs, Francisco Landino (pianista cego florentino), Antônio Cabezón (organista cego), escritores cegos: António Feliciano de Castilho, a ensaísta americana Hellen Keller, a poetisa e professora Virgínia Vendramini; o violinista cego Manuel de Lima, os compositores cegos Joaquín Rodrigo (espanhol, autor do Concierto de Aranjuez), o brasileiro Beto Melo, o tenor Andre Bocelli, Ray Charles e Stevie Wonder são/eram cegos; a cantora brasileira Kátia e, mais recentemente o grupo Tribo de Jah, todos demonstrando talentos. Por isso, a frase dita pelo escritor Vitor Hugo parece irrefutável: “o cego vê na sombra um mundo de claridade; quando o olho do corpo se apaga, acende-se o olho do espírito”. Aos abençoados pelos dotes completos de todos os sentidos, tidos como “perfeitos”, é preciso ser grato, saber calar, tapar os olhos e ouvidos quando necessário.

Leonardo Teixeira.

Um comentário:

  1. Olá amigo William excelente texto. Realmente as pessoas cegas desenvolvem outros sentidos e vêem através do espírito. Devemos saber dosar nossos sentidos para tudo o que ouvimos e olhamos.

    Abraços.

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