quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Como está sua saúde intelectual ?

Está fora de moda falar em intelectual. É essa aparente anacronia que quero pensar. Isto exige responder a, pelo menos, duas questões: quem expulsou a função intelectual - função da inteligência - do propriamente humano? e, o que é o ser humano desprovido de intelecto?

Intelectual é a pessoa inteligente, aquela que pensa, que faz uso de sua condição de ser humano - distinto dos animais e dos deuses - para poder ser humana: única e distinta, sem gênero ou espécie. Pela intelectualidade, o ser humano se destaca e abandona a mediocridade. Por essa definição, não bastam os saberes da moda, que produzem e armazenam informações, sem, contudo, comportarem-se de modo inteligente frente à sua produção e ao seu armazenamento. Não basta ser cientista para ser inteligente, especialmente quando não se dispõe de recursos intelectuais para justificar e às vezes sequer compreender sua prática científica. Isto fica claro quando alguma exigência metodológica "foge" do laboratório e se desnuda na esfera da política: a palavra do cientista é a de um autômato que repete, sem cessar: "a ciência exige!", "a ciência necessita!".

Ficamos sem saber se se trata de um instinto ou de uma divindade a origem da exigência! Do mesmo modo o filósofo pode ser um monumento à mediocridade! Basta que ele relegue ao cânone filosófico, desconsiderando as vicissitudes da sua construção, a resposta para os problemas humanos postos à competência filosófica. Aí é ele quem automatiza sua fala e repete: "Platão disse...", "Aristóteles responde..." ou "o imperativo categórico de Kant...". Em qualquer das situações, fica clara a recusa ao pensamento, a delegação a um meio fetichizado - método científico ou cânone filosófico - da função do pensamento, para quem esses meios existem com sentido, e não o contrário!

Ser intelectual, então, em nada se confunde com a repetição ou a ritualização dos saberes. Escapar aos saberes e pensar é a função do intelectual. O exercício dessa função humaniza a quem pensa e a sociedade em que está, afinal, por mais embrutecida que esteja uma sociedade, enquanto nela alguém pensar podemos dizer que ainda se trata de uma sociedade humana.

Entre as atividades do pensamento, talvez aquela mais identificada com a competência intelectual fosse e seja a atividade de professor e professora. Não era em vão que dizíamos que a criança ia à escola para aprender a pensar; com Freud ou sem ele, sabíamos dos entraves que o núcleo familiar impõe à liberdade, ao pensar e ao aparecer pleno das potencialidades humanas. A mesma crença encaminhava os filhos burgueses à academia para que tomassem posse de saberes que os fizessem mais inteligentes, mais bem-sucedidos socialmente e, até, mais humanos. Hoje, a justificação dessas crenças está cada vez mais difícil, elas caminham, juntas, para o lugar da passividade social e da imobilidade do pensamento, para a sua extinção. Entre as atividades do pensamento, talvez nenhuma outra esteja sofrendo um processo de des-intelectualização tão acentuada como a de professor e professora. Nos três níveis da formação escolar - fundamental, médio e acadêmico - está em marcha acelerada o embrutecimento pela deslegitimação burocrática e mercadológica do pensar.

As instituições escolares, nas quais passaram a ser subsumidos professores e professoras como meros tarefeiros de gestores ou sacerdotes do mercado, não apresentam diferenciais significativos entre si, reduzindo-se às tarefas internas de controlar seus tarefeiros e iludir seus "clientes" e às externas de produzir imagens, produzir o falso. Para esta realidade, pensar tornou-se o pior dos talentos que um profissional pode ter, pois ele não rima com controle nem com o falso. Estudantes e seus responsáveis aceitam, alguns até veem nisso um lugar de reconhecimento (!), a ofensa de serem chamados clientes!

É bom que se diga, que o cliente é uma instituição da Roma Antiga que associava plebeus a patrícios em uma escravidão mais branda. Pela clientela, um plebeu, o cliente, submetia-se a uma relação de patronagem com o patrício que lhe prestava proteção em troca do voto nas disputas políticas de seu interesse. Em termos contemporâneos, que em nada ficam devendo ao instituto social antigo, o cliente é aquela pessoa que abre mão de sua humanidade, de sua liberdade e pensamento, por benefícios que, hoje, já não condicionam sua sobrevivência, mas que mantém sua intocada mediocridade, afinal, seja qual for o estabelecimento comercial, vendendo quinquilharias com ou sem diploma, a condição de cliente é de adesão voluntária!

O sucesso desse "empreendimento" escolar só é garantido pela submissão ao controle. Professores e professoras escolheram parar de pensar ou sequer desenvolveram esta habilidade, veja-se que já estamos em uma geração que não é o primeiro fruto da des-intelectualização. Hoje, formam-se professores e professoras, especialmente na academia e para a academia, com o código de barras do lattes. Ressalvados os méritos da publicidade e da transparência das informações, o sistema lattes não ultrapassa o posto de símbolo fálico por excelência a produzir um imaginário povoado por fantasias de excelência acadêmica pouco convincentes. Ao professor e à professora já não se espera condições de demonstrar sua qualidade e distinção, o sistema gera os índices de forma automática, o que é compreendido como objetivo, fidedigno e inquestionável.

Mas esta é a sociedade do controle, pensou o leitor atento. É a sociedade da compulsão pelo consumo, cujo hedonismo só pode ser total e ilimitado. Não há mais nada de humano na sociedade humana que pareça fazer oposição ou contraponto à mediocridade administrada que nos conduz, via mercado, via Estado, via mídias, em especial, ao precipício do desumano.

Agora posso tentar responder às duas questões que fiz no início do texto. A primeira perguntava pela responsabilidade da expulsão do pensamento do âmbito do humano. Vamos à resposta. A tensão entre o animal e o divino constitui o ser humano. Quando não superadas, elas são duas formas de alienação do ser humano em que ele submerge para negar-se à liberdade e ao pensamento quando se nega a responsabilidade de ser humano. Somos todos responsáveis pela expulsão do pensamento, como podemos ser os responsáveis pela sua acolhida.

A segunda pergunta quer saber o que resta de humano ao ser humano se o pensamento desapareceu. Resta o inumano, porque humanidade exige pensamento e liberdade que possam ser assumidos. Essas duas expressões da autonomia como crença iluminista na razão fazem sentido se estiverem ancoradas em uma responsabilidade que tenha as características da autoria.

A liberdade para ser livre não pode ter parâmetros, assim como o pensamento precisa responder desde um lugar de unicidade do ser humano, onde apenas o humano possa se dar. Acreditar que nos resumimos ao determinismo biológico refinado do século 21 ou às novas velhas formas de fundamentalismo religioso ou misticismo parecem-me reificação do humano: coisa natural, ou coisa religiosa. Alternativas estéreis para o intelectual porque proibidoras do pensar. Às vezes, estar fora da moda e fora de sincronia podem ser uma questão de saúde.

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